sábado, 27 de dezembro de 2014

O voyeurismo na poesia parnasiana de Raimundo Correia


Texto publicado originalmente na Revista Germina

O crítico português Duarte de Montalegre, em seu Ensaio sobre o Parnasianismo brasileiro, definiu da seguinte maneira a postura do poeta parnasiano: “(...) o parnasiano é um sensual; a sua atitude poética perante o mundo limita-se a uma vivência de plasticidades, de harmonias, de cores”[1], ou seja: a poesia parnasiana remeter-se-ia, por oposição às escolas literárias idealistas (como o Romantismo), prioritariamente ao mundo dos fenômenos sensíveis. Entretanto, é possível distinguir na sensualidade aludida — ou, melhor dizendo, nessa “sensorialidade” — a ascendência do elemento visual sobre os demais, tanto que, não raro, os poemas de nosso Parnasianismo eram chamados “quadros” ou “cromos”. Percebe-se, portanto, a visualidade como aspecto central da configuração do universo imaginário da poesia parnasiana, o que assume uma interessante feição ao abordarmos a vertente erótica de tal poesia no Brasil: o voyeurismo, caracterizado não somente pela descrição do corpo feminino, como também por colocar em cena (tematizar) a própria situação do voyeur, daquele que, sorrateiro, flagra a intimidade de seu objeto de desejo.

Afonso Romano de Sant’anna, em seu estudo sobre o erotismo na poesia brasileira, foi o primeiro a dar a devida importância ao voyeurismo como componente da ars erotica parnasiana. Opondo o Parnasianismo a uma tendência “oral” da poesia romântica, Sant’anna fala de um “reincidente voyeurismo” de nossos parnasianos, resultado de uma duplicidade da mulher como signo: ao passo que ela é apresentada como Vênus (significante), subsiste nela um substrato ideológico que a acaba identificando com a Virgem Maria (significado). Tal duplicidade, relacionada à gênese de nossa cultura patriarcal — fortemente marcada pela tradição católica — e reforçada pela posição que o positivismo dedicava à mulher em seu sistema, cria uma situação na qual, ao mesmo tempo em que a figura feminina apresenta-se como objeto de desejo, a possibilidade da realização desse desejo é interdita[2]. Por consequência, o distanciamento, que se manifesta pela “repetição dos verbos ‘ver’ e ‘olhar’” e no qual o sentido da visão substitui o corpo do eu lírico, surge como um expediente que visa mitigar a carga erótica relacionada à representação do corpo feminino[3].

Seria ingênuo afirmar que a repressão não é uma poderosa força atuando na conformação do erotismo parnasiano. Entretanto, a análise de Sant’anna, ao enfocar a poesia erótica preferencialmente pelo prisma da interdição, acaba deixando de lado algumas importantes nuances. O distanciamento — ao instaurar o espaço necessário à perspectiva voyeurística — opera dentro da concepção de visualidade do Parnasianismo, que, se elide a possibilidade do contato entre eu lírico e figura feminina, ao mesmo tempo força ao limite as normas do decoro estilístico. Subsiste, no voyeurismo parnasiano, a tentação de mostrar sempre um pouco além do permitido. Para isso, é preciso que tal desejo de ver conforme-se a uma linguagem depurada de qualquer obscenidade, o que facultaria ao poeta sua investida no campo minado das fantasias.

Possivelmente, o poeta que melhor encarnou os dilemas e as ambiguidades do voyeurismo parnasiano no Brasil foi Raimundo Correia. Para mostrá-lo, limitar-me-ei, dentre seus poemas que apresentam a nudez feminina como tema, àqueles que, de alguma maneira, colocam em jogo a questão do olhar.

A avidez do olhar

A estreia literária de Raimundo Correia acontece em 1879, com o livro Primeiros sonhos. Trata-se de um livro tipicamente romântico (ultrarromântico, para ser mais preciso), no qual se sente grande influência de Álvares de Azevedo e Casimiro de Abreu, numa época em que grande parte da intelectualidade brasileira já acusava o esgotamento do Romantismo. Machado de Assis assim escrevia, também em 79: “(...) acho legítima explicação do desdém [pelo Romantismo] dos novos poetas: eles abriram os olhos ao som de um lirismo pessoal, que salva as exceções, era a mais enervadora música possível, a mais trivial e chocha. A poesia subjetiva chegara efetivamente aos derradeiros limites da convenção, descera ao brinco pueril, a uma enfiada de coisas piegas e vulgares”[4]. Não nos esqueçamos que, um ano antes, o Romantismo fora alvo de jovens poetas nas páginas do Diário do Rio de Janeiro. Tais poetas publicavam poemas escarnecendo a velha escola literária, que, por sua vez, era defendida — também em versos — por poetas mais tradicionalistas, num episódio que ficou conhecido como Batalha do Parnaso[5]. Não é por acaso, portanto, que o próprio Raimundo Correia chegue a apontar o caráter anacrônico de seu primeiro livro[6].

Pouco haveria o que dizer sobre esse livro, que replica mecanicamente os lugares-comuns identificados por Mário de Andrade na poesia lírico-amorosa de nossos românticos, reunidos pelo autor de Macunaíma sob a definição de “complexo do medo do amor”[7]. Em Primeiros sonhos, encontramos a figura da virgem pudica e langorosa, o eu lírico tímido e submisso (sempre à beira da paralisia diante da mulher amada) e a sublimação do sentimento amoroso, destituído de qualquer conotação erótica. Um tipo de poesia que, ao mesmo tempo em que reúne vários tropos da tradição lírica europeia (pelo menos desde o Trovadorismo occitânico), serviu de conveniente meio de expressão a indivíduos formados numa cultura patriarcal baseada na idealização dos vínculos familiares, na sacralização da mulher no papel de mãe e na valorização (prescritiva) da virgindade feminina.

Portanto, é no segundo livro de Correia — Sinfonias, de 1883 — que a temática erótica aparece em contornos mais nítidos. Sinfonias é uma obra bastante representativa de uma época na qual, durante o ocaso do Romantismo, concorriam várias tendências poéticas, dentre elas um Parnasianismo ainda incipiente. O livro divide-se em duas partes: na primeira, de natureza mais propriamente lírica, reminiscências românticas convivem com elementos parnasianos e outros do “realismo”; na segunda, o que vemos é uma poesia de caráter político, empenhada num projeto de reforma social modernizante e que se encaixa no que, à época, era chamado de poesia socialista ou social-realista. A obra de Raimundo Correia assume uma feição exclusivamente parnasiana apenas a partir de seu terceiro livro, Versos e versões, de 1887.

Levando em conta Sinfonias e Versos e versões, nos quais a temática erótica aparece de maneira mais pronunciada, procurarei ater-me aos poemas que apresentam características parnasianas, deixando de lado os que, no primeiro livro, são diretamente filiados à poesia realista, como os sonetos “Na penumbra” e “Après le combat”.

Para os propósitos deste ensaio, o mais significativo poema do conjunto é “Plena nudez”, publicado em Sinfonias. Embora seja perceptível a inspiração de tal soneto no “Profissão de fé” de Carvalho Júnior (em que o autor combate os lugares-comuns do lirismo-amoroso romântico, sobretudo a excessiva sublimação da figura feminina), distingue-se a eleição do ideal de beleza clássico, considerado perene em contraposição aos modismos hodiernos. Vamos a ele:

Eu amo os gregos tipos de escultura;
Pagãs nuas no mármore entalhadas;
Não essas produções que a estufa escura
Das modas cria, tortas e enfezadas.

Quero um pleno esplendor, viço e frescura
Os corpos nus; as linhas onduladas
Livres; da carne exuberante e pura
Todas as saliências destacadas...

Não quero, a Vênus opulenta e bela
De luxuriantes formas, entrevê-la
Da transparente túnica através:

Quero vê-la, sem pejo, sem receios,
Os braços nus, o dorso nu, os seios
Nus... toda nua, da cabeça aos pés!
           
O eu lírico reivindica uma visualização integral das graças feminis da estátua de Vênus, sem que o pudor do artista lhe oblitere a vista. Na verdadeira arte, a nudez terá de ser plena, total, radiante, não devendo haver qualquer impedimento ao olhar. Além disso, a evocação da arte grega como modelo talvez nos remeta a um relacionamento mais livre com o nu, isento das noções de pecado e vergonha que caracterizam a civilização judaico-cristã. Um soneto que parece colocar em prática os princípios defendidos em “Plena nudez” é “Ouro sobre azul”, também de Sinfonias:

Quando ela, sobre as águas transparentes,
Surge em casta nudez, em amor acesa,
A vaga envolve em ósculos frementes
Todo o corpo da olímpica princesa.

O misto de luxúria e de pureza
Dos seus contornos nítidos, patentes,
É o poema excelso da Beleza
Em estrofes de Paros, reluzentes...

Vendo-a assim, cuido ver, branca de espuma,
Vênus que surge, e da onda que flutua
No verde flanco lânguida se apruma;

E soltos, vendo-lhe os cabelos, cuido
Ver despenhar-se sobre a deusa nua
Serena catadupa de ouro fluido...

“Casta nudez”, “todo o corpo”, “contornos nítidos” e “deusa nua”; embora o poeta não se detenha em nenhuma parte específica do corpo feminino (com exceção dos cabelos), a nudez da deusa é sem dúvida o tema principal do poema, como as passagens coligidas permitem supor. Trata-se de uma visão geral e genérica do nu, sem o detalhamento requerido em “Plena nudez”: “Os braços nus, o dorso nu, os seios/ Nus (...)”, mas ainda assim um poema de manifesta sensualidade. Embora o observador da cena não seja diretamente representado, percebemo-lo nas seguintes passagens: “Vendo-a assim, cuido ver (...)” e “(...) vendo-lhe os cabelos, cuido/ ver (...)”. O eu lírico apresenta-se como aquele que frui a brilhante aparição da deidade nua. Trata-se de uma estratégia distinta da que verificamos no poema “Aspásia”, de Versos e versões:

Ao clarão oriental do sol; da balsamina,
Doce, pelo nariz bebendo a essência fina;
Do lábio a polpa a abrir, mais úmida e vivaz,
Que a polpa sumarenta e rija do ananás;
Com as mãos a soster dos seios copiosos
O gêmeo e branco par, os dois limões cheirosos,
Os dois globos de neve humana; e o largo olhar
Embebedando em luz; toda a se espreguiçar,
Num espreguiçamento e num bocejo estranho,
Aspásia vacila antes de entrar no banho...
Como a expelir do sono os fluidos mais sutis,
Os membros distendia, às curvas e aos quadris
As linhas desmanchando, ondulosas, redondas...
(...)
Finalmente ela entrou na líquida esmeralda,
Pouco a pouco... meteu, primeiro, o leve pé
De jaspe e rosa, e após cingia-a já até
Quase ao meio da branca e deliciosa perna
A água, a se desfazer numa carícia terna...
Mas um berro brutal, de súbito, atroou,
E no ambiente aromado ativo se espalhou
Esse olor especial de que fala, no idílio
Agreste e pastoril das Éclogas, Virgílio;
Entre as moitas estava a contemplar-lhe os mil
Encantos da nudez e o busto feminil,
Com olhos de lascívia e de volúpia mornas,
Um sátiro enramado, um Coridon de cornos,
Um bode enfim... Surpresa, ela olhou para trás,
Estremeceu, e viu-se então a coisa mais
Estranha e original, que imaginar se pode: —

O bode a persegui-la, e ela a fugir do bode!...

Neste poema, o papel do voyeur é transmitido do eu lírico ao sátiro que observa Aspásia banhar-se. Aliás, a situação de voyeurismo estabelecida entre as duas personagens é um dos elementos que contribuem para a criação da atmosfera erótica do poema, introduzindo uma tensão sexual inexistente em “Ouro sobre azul”. A consumação do impulso amoroso é uma possibilidade mantida em aberto, ainda que tal consumação signifique, no fim das contas, um ato de violência sexual. Não esqueçamos que a perseguição da beldade nua por um ente da floresta é um tema mitológico recorrente, encontrado também em “O leque”, de Alberto de Oliveira. Outro aspecto interessante a considerar em “Aspásia” é que nele encontramos o nu mais detalhado da obra de Raimundo Correia, e o mais sensual. Além de suas diversas informações visuais, o poema ainda abarca o paladar (o lábio comparado à “polpa sumarenta e rija do ananás”; a “branca e deliciosa perna”), o olfato (os seios como “dois limões cheirosos”; o “ambiente aromado ativo”) e o tato (“A água, a se desfazer numa carícia terna...”), mobilizando uma gama de sensações.

Agora vejamos “Noite de inverno”, também de Versos e versões:

Enquanto a chuva cai, grossa e torrencial,
         Lá fora; e enquanto, ó bela!
         A lufada glacial
Tamborila a bater nos vidros da janela;

         Dentro, esse áureo torçal
Do cabelo que, rico, em ondas se encapela,
         Deslaça; e o alvor ideal
Do teu corpo à avidez do meu olhar revela;

         Porque, à avidez do olhar
         Do amante, é grato, ao menos,
Dessas noites no longo e monótono curso,

         — Claro como o luar —
         Ver um busto de Vênus
Surgir nu dentre as lãs e dentre as peles de urso.

O corpo da mulher revela-se como espetáculo à “avidez do olhar” do eu lírico; entretanto, algo muda de figura. A princípio, a conjunção enquanto sugere uma oposição entre o frio da chuva, com sua “lufada glacial”, e o ambiente onde eu lírico e sua amada se encontram, que supomos aquecido. Ocorre, todavia, que à medida que sua nudez se desvela, a mulher torna-se tão fria quanto a noite chuvosa. Seu cabelo é “áureo” e “rico” como o ouro, elemento mineral; o “alvor” da pele é “ideal”, o que eleva o corpo feminino além da realidade concreta; o “busto de Vênus” é “claro como o luar”. A própria escolha do termo “busto”, em detrimento do mais frequente “colo” ou de “seio”, demonstra a intenção de aproximar a amada de uma estátua, representando-a fria em contraste com “lãs” e “peles de urso”, que transmitem a ideia de calor.

Affonso Romano de Sant’anna aponta outros dois expedientes pelos quais o teor erótico da poesia parnasiana seria mitigado, além do distanciamento já referido: o esfriamento, em que a figura feminina é apresentada por meio de “metáforas duras e frias”, e a imobilidade, segundo a qual a mulher é fixada como estátua, portanto impossibilitada de corresponder ao afeto de seu admirador (o que chamo, não sei se com alguma originalidade, de complexo de Pigmaleão do Parnasianismo brasileiro)[8]. Ambos os expedientes podem ser percebidos em “Noite de inverno”. Se em “Ouro sobre azul” e “Aspásia” o tema mitológico ganha vida, introduzindo o poema num clima de sensualidade, em “Noite de inverno” a mulher transmudada em estátua de Vênus é investida de frieza — sua nudez é gélida como o clarão da lua, muito diferente do calor mediterrâneo que pressentimos nos outros dois poemas.

Aqui surge uma questão interessante: ao que parece, o tema clássico é o que faculta ao poeta sua entrada nos domínios do erótico. Chancelados pela tradição como elementos da alta cultura, tais temas, inúmeras vezes representados na arte ocidental, perdem qualquer teor obsceno ou perverso que, porventura, pudessem ter originalmente. Por outro lado, a nudez da mulher contemporânea apresentava-se de maneira problemática à consciência dos artistas na segunda metade do século XIX. Em seu livro A pintura da vida moderna, o crítico de arte norte-americano T. J. Clark reconstitui o escândalo que o quadro Olympia, de Édouard Manet, causou ao ser exposto no Salão de Paris de 1865[9]. Entre outras razões para o escândalo, estaria o fato de Manet, ao representar a nudez de sua figura central, prescindir de todo o repertório clássico que, por sua natureza alegórica, garantia ao nu certa dignidade artística, além do que, optando pelo tema da cortesã, o artista o apresentava em desacordo com a ideologia da época, que criara um mito social reconfortante sobre a prostituição, destituindo-a de seu caráter de classe ao priorizar a imagem da prostituta de luxo. Comentando o nu como gênero da arte francesa de meados do século XIX, Clark aponta seu convencionalismo universalizante: “A inevitável força sexual dessa nudez é convertida em várias ações e atributos, e traduzida numa linguagem opulenta e convencional. O que resta é um corpo, dirigido ao espectador franca e diretamente, mas em grande medida generalizado na forma, arranjado num esquema complexo e visível de rimas, expurgado de particularidades, oferecido como uma versão livre, mas respeitosa, dos modelos corretos, aqueles que melhor enunciam a natureza”[10].

Olympia (1863) - Édoaurd Manet

Devemos levar em consideração que o parnasianismo, incluindo o brasileiro, compartilhava com a arte academicista francesa do século XIX vários temas. Abundam, na arte do período, inúmeros nascimentos ou aparições marítimas de Vênus e, se fôssemos listar os poemas de nossos poetas parnasianos sobre o assunto, a lista seria enorme. Para ficar em alguns exemplos, citemos, de Raimundo Correia, além do já apontado “Ouro sobre azul”, o soneto “Citera”, do livro de 1891 (Aleluias). Alberto de Oliveira, por sua vez, possui o poema “Aparição nas águas” (de seu primeiro livro, Canções românticas) e uma série de três sonetos intitulada “Afrodite”, presente em Meridionais. Além disso, Olavo Bilac, com seus poemas “O julgamento de Frineia” e “Aspásia”, parece dialogar com dois quadros de Jean-Léon Gérôme: Phryné devant l’Aéropage (1861) e Socrate venant chercher Alcibiades chez Aspasie (Idem), respectivamente.

Phryné devant l’Aéropage (1861) - Jean-León Gérôme

Portanto, o que temos no poema “Plena nudez” parece ser a defesa do “ideal pagão” caro à arte europeia do século XIX e que, conforme T. J. Clark, proporcionava “um espaço no qual o corpo da mulher pudesse ser consumido sem desmedida prevaricação”[11]. A nudez da mulher contemporânea, ao contrário, ameaçava embaralhar as categorias sobre as quais estavam fundados os sistemas de representação social da época. Se, na França, a prostituta ajudava a constituir, por negativo, a imagem da chamada “mulher honesta”[12], no Brasil, país fortemente marcado por suas origens patriarcais, essa questão mostrava-se ainda mais sensível.

Mary Del Priori descreve como a imagem da santa-mãezinha (de inspiração mariológica) tornou-se um modelo de comportamento às mulheres do Brasil Colonial. Ao longo dos séculos XVI e XVII, houve a sacralização do papel social de mãe, de modo que a mulher era restrita aos cuidados da casa e da família, o que a integrava no projeto colonizador e liberava os esforços masculinos para a produção econômica e a defesa do território, além de assegurar o contingente de “portuguesinhos” para levar adiante o processo de colonização. A Igreja, por sua vez, enxergava na mulher o elo de transmissão da doutrina e dos valores católicos às gerações futuras (não nos esqueçamos de que isso se dava em pleno contexto da Contrarreforma). Dessa maneira, elege-se o modelo da santa-mãezinha como ideal de comportamento cujo objetivo era adequar a sexualidade feminina aos rígidos padrões da moralidade tridentina e instrumentalizar a mulher (isto é, direcionar suas energias e seu trabalho social) para o esforço colonizador[13].

Atribuía-se então à mulher, na condição de mãe, uma respeitabilidade que era também marca de distinção de classes. Numa sociedade em que o sistema produtivo polarizava-se entre senhores e escravos, a maior parte da população livre vivia numa situação de aguda instabilidade social, sobrevivendo de expedientes provisórios, o que podia significar uma existência levada em trânsito, ao capricho das oportunidades de trabalho. Como consequência, eram comuns nessa parcela da população as uniões informais, às vezes efêmeras, sem falar que muitas mulheres pobres, sem meios próprios de subsistência, sentiam-se impelidas a aceitar arranjos ilegítimos, como o concubinato ou até mesmo a prostituição. Assim, as mulheres de extração mais baixa (muitas delas de origem indígena e africana) pareciam, aos olhos da casa-grande, moralmente degradadas e destituídas de qualquer senso de decência. Portanto, a respeitabilidade da mulher de família patriarcal, estabelecida como norma para o comportamento feminino, devia-se a determinadas circunstâncias socioeconômicas favoráveis, constituindo um privilégio para poucas e um ideal a ser perseguido pelas classes menos favorecidas[14].

É esse o arcabouço ideológico com o qual a representação do corpo feminino ameaçava romper, caso não fossem respeitados os protocolos que prescreviam, em se tratando da nudez, a temática clássica. O perigo era embaralhar as categorias sociais relativas à condição feminina, gerando um apagamento da fronteira entre a mulher honesta e a desfrutável, e introduzindo na poesia aspectos que a moralidade pública preferia manter à margem, como uma sexualidade não enquadrada nos padrões matrimoniais e familiares. A ausência daqueles elementos que constituíam as convenções artísticas da época instaurava, no cerne do poema, um conflito entre o impulso voyeurista (típico do Parnasianismo, como vimos) e uma preocupação com a dignidade intrínseca da arte (decoro) e a decência do público. Vejamos, a esse respeito, o soneto “No banho”, de Sinfonias:

Não eras só na câmera deserta
Quando o banho tomavas perfumoso;
Banho feito do aroma voluptuoso
Que às odaliscas a Turquia oferta...

Fora — do estio estava a clama aberta —
Dentro — o sossego morno e silencioso —
E eu às ocultas te mirava, ansioso;
Não eras só na câmera deserta...

E em torno derramaste o olhar celeste;
Desfolhaste-te, flor; nu, dentre a veste
Teu colo começou a aparecer,

E a espalda, e o dorso... E, vencedor sublime,
Eu, forte, não perdi-te nem perdi-me,
E ai! podia perder-me e te perder!

O que temos aqui não é somente a configuração de uma perspectiva voyeur por meio do detalhamento pictórico da nudez feminina, mas também a tematização da própria situação de voyeurismo, em que o eu lírico espiona sorrateiramente uma mulher que se banha. O voyeur assume o primeiro plano da cena e a excitação que percorre o soneto dá-se tanto pelo prazer da indiscrição quanto pela nudez em si, esboçada, aliás, apenas nos dois tercetos. O poema ousa ao não se refugiar no território pacificado das referências clássicas, apesar de uma episódica alusão às odaliscas (figuras que, devido a seu exotismo oriental, integravam o rol dos lugares-comuns eróticos aceitáveis na arte do século XIX), contudo, sua ousadia possui limites claros: a gradação pela qual a nudez feminina é evocada interrompe-se logo abaixo do dorso, restando ao leitor completar com a imaginação a lacuna deixada em aberto pelo sinal de reticências. Logo em seguida, o eu lírico gaba-se de seu autocontrole, pois poderia ter colocado a perder sua honra e a da mulher caso cedesse aos desejos que o consumiam. A renúncia ao gozo é motivo de orgulho, uma vez que preserva os valores que regulam socialmente a vida sexual, mas não se consegue ocultar a ambiguidade da situação: a contemplação da mulher num momento de intimidade já é uma transgressão dos valores que o eu lírico julga estar defendendo.

“No banho” é um exemplo bastante ilustrativo do embate entre um imperativo visual, que procura converter a sexualidade em espetáculo, e as normas sociais que prescrevem a mais severa discrição quanto às coisas do sexo. No soneto de Raimundo Correia, ambas as forças são tematizadas e tenta-se encontrar um ponto de equilíbrio entre elas, de modo que uma não seja completamente sacrificada em favor da outra. Dando continuidade a estas reflexões, passemos ao poema “No jardim” (Sinfonias):

Estavas no jardim. Raiara um dia
Fresco, primaveril, resplandecente;
Nos tanques cheios de água, intermitente,
Quérulo, o vento as flores espargia...

Bela, sem que me visses, eu te via
Colhendo rosas; teu roupão na frente
Suspenso um pouco, negligentemente,
Rósea porção da perna descobria...

Que desalinho cândido! que braço!
Como enchia-se níveo o teu regaço
Das flores que caíam-te da mão!

E mal me viste, em fogo, te fitando,
Rubra em pejo, a fugir foste deixando
Uma esteira de rosas pelo chão...

Embora a situação e o ambiente representados sejam tipicamente românticos, dignos de um Casimiro de Abreu, e não haja qualquer referência clássica, o poema é essencialmente parnasiano, como se pode perceber pela ênfase na descrição em detrimento do lirismo. O eu lírico, ainda que personificado, praticamente nada nos fala de suas emoções e sentimentos, restringindo-se a nos apresentar da maneira mais detalhada e nítida possível a cena na qual participa na condição de mero espectador, pelo menos até a última estrofe, em que a moça percebe sua presença. Pode-se dizer que estamos diante de uma cena romântica apresentada de acordo com princípios formais parnasianos, dando testemunho não só do hibridismo de Sinfonias, como também da permanência de elementos românticos na poesia parnasiana de Raimundo Correia.

Por trás da aparente inocência do quadro, podemos sentir o erotismo no foco dado à perna parcialmente descoberta da mulher e ao “níveo regaço” que se vislumbra através de suas vestes desalinhadas. Basta isso para que o olhar do eu lírico acenda-se “em fogo”, assustando seu objeto de desejo. Ao contrário do que acontece na poesia romântica, não é preciso que o poeta insista sobre a pureza de sua amada, empregando repetidamente qualificativos relacionados à castidade. Em “No jardim”, tudo o que precisamos saber sobre o caráter da figura feminina está concentrado em “rubra em pejo” e em sua fuga ao descobrir-se espionada. É a própria descrição da mulher e a narração dos fatos que nos dão as informações necessárias, sem que o autor mencione explicitamente as virtudes da mulher observada. O voyeurismo um tanto idílico deste soneto nos remete à passagem de uma paráfrase que Raimundo Correia — também em Sinfonias — escreveu a partir de um poema de Victor Hugo que conta a história do beijo de um jovem casal numa cerejeira:

Quando entre as ramas via algum fruto maduro,
Como um botão de fogo, entre os sarçais, vermelho,
Subia mais, mostrando, em um desleixo puro,
A perna inteira até a curva do joelho...

A escolha do poema de Victor Hugo certamente não é fortuita, pois indica uma tendência dos poemas de Correia e que consiste na apresentação dos olhos como os principais órgãos de satisfação erótica. Tanto nesta paráfrase quanto em “No jardim”, a inocência e a graça infantil da mulher amada são o que impedem o olhar do eu lírico de entregar-se a seus impulsos. Apesar da incorporação cada vez mais evidente dos princípios parnasianos, mesmo assim fazem-se sentir aspectos relacionados ao complexo romântico do medo do amor, testemunhando a continuidade da experiência social que lhe serve de fundamento.

Como podemos perceber, nesses poemas o olhar do voyeur recua diante de seu objeto de desejo, seja por sua própria firmeza moral, seja pelo recato da figura feminina. Quando o poema destaca-se do sistema de convenções clássicas, entram em circulação os valores morais da sociedade de origem patriarcal, que encontravam no lirismo-amoroso romântico um meio conveniente de manifestação. Porém, a própria situação de escopismo neles configurada, que coloca o eu lírico na condição do voyeur, introduz no poema uma nota perversa (sexualmente falando), perturbando tanto a resolução moral de “No banho” quanto a atmosfera idílica de “No jardim”.

Considerações finais

Ao longo do século XIX, a sociedade brasileira passava por profundas transformações. Uma das mais significativas foi o deslocamento das elites rurais para as cidades, processo descrito e analisado por Gilberto Freyre em Sobrados e mucambos[15]. Nas cidades, as famílias proprietárias entravam em contato com uma realidade social mais diversificada e complexa, incorporando novas formas de sociabilidade, inspiradas no estilo de vida burguês das nações europeias industrializadas. Não demoraria até que os rebentos dessas famílias, educados de acordo com os sistemas de pensamento mais modernos da época, acabassem por contestar os fundamentos sobre os quais se estabelecia a sociedade brasileira de então, combatendo o regime monárquico, a escravidão e os valores patriarcais de nossa formação cultural (incluindo, aqui, o papel atribuído à mulher). O grande marco desse impulso reformista da juventude brasileira ficou conhecido como “Geração de 70” (1870), capitaneada por figuras como Tobias Barreto e Sílvio Romero.

Contudo, esse desejo de reforma da sociedade esbarrava num obstáculo: como modernizar a cultura e o pensamento brasileiros quando nossas estruturas econômicas mantinham-se basicamente as mesmas desde o período colonial, com a economia voltada ao fornecimento em larga escala de produtos primários para o mercado internacional? Situação, esta, que se preservaria, com alterações epidérmicas (como a substituição da mão de obra escrava pela de trabalhadores em condição de semi-servidão) até pelo menos a década de 1930. A história do século XIX no Brasil, como se vê, constituiu-se ao sabor de rupturas e acomodações, entre descontinuidades e continuidades.

É sobre esse pano de fundo social de efervescência e sedimentação da cultura brasileira nos 1880 que melhor apreendemos o voyeurismo vacilante de Raimundo Correia. Por um lado, percebe-se o intuito de levar o erotismo além dos limites estabelecidos pela moralidade patriarcal, que tão bem se enquadrava na produção lírico-amorosa de nossos poetas românticos — intuito que se configura como um desejo de desvelar a nudez feminina. Por outro, a resolução de ver e representar o corpo da mulher “sem pejo, sem receios” esbarra nos valores patriarcais, como a sobrevalorização da castidade feminina, tão logo o poeta abandona o repertório prestigioso das convenções classicistas. Um voyeur vacilante para uma sociedade que ora parece avançar, ora girar em falso.

Restou, ainda, para uma oportunidade futura, a investigação daquilo o que Manuel Bandeira, tratando do erotismo na poesia de Raimundo Correia, identificou como sendo uma “decantação da nudez”[16], o que, infelizmente, escaparia aos limites do atual ensaio.


Referências bibliográficas

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BANDEIRA, Manuel. Antologia dos poetas brasileiros: poesia da fase parnasiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.

CLARK, T. J. A pintura da vida moderna: Paris na arte de Manet e de seus seguidores. Tradução José Geraldo Couto. São Paulo: Companhia das Letras, 2004

CORREIA, Raimundo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1961.

MONTALEGRE, Duarte de. Ensaio sobre o parnasianismo brasileiro. Coimbra: Coimbra Ed., 1945.

FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. 15 ª ed. São Paulo: Global, 2004.

PRIORE, Mary Del. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidade e mentalidade no Brasil Colônia. 2ª ed. São Paulo: Editora UNESP, 2009.

SANT’ANNA, Affonso Romano de. O canibalismo amoroso: o desejo e a interdição em nossa cultura através da poesia. 4ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.



[1] MONTALEGRE, Duarte de. Ensaio sobre o parnasianismo brasileiro. Coimbra: Coimbra Ed., 1945, p. 14.
[2] SANT’ANNA, Affonso Romano de. O canibalismo amoroso: o desejo e a interdição em nossa cultura através da poesia. 4ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1993, pp. 66-73.
[3] Idem, ibidem: p. 74.
[4] ASSIS, Machado de. “A nova geração”. In: Crítica literária. São Paulo: Ed. Brasileira, 1959, pp. 181-2.
[5] Segundo Manuel Bandeira, a designação “parnasianismo” não está vinculada à Batalha do Parnaso. O termo, tomado de seu correspondente na literatura francesa, teria sido utilizado pela primeira vez no Brasil em 1886, numa nota crítica de Alfredo de Souza a um livro de Francisco Lins. BANDEIRA, Manuel. Antologia dos poetas brasileiros: poesia da fase parnasiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, pp. 7-8.
[6] Ao final de primeiros sonhos, diz Raimundo Correia: “Reconheço, que há neste meu primeiro trabalho literário composições ridiculamente contrárias ao espírito da época”. CORREIA, Raimundo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1961, p. 120.
[7] ANDRADE, Mário de.  “Amor e medo”. In: Aspectos da literatura brasileira. 4ª ed. São Paulo: Livraria Martins; Brasília: INL, 1972, pp. 197-230.
[8] SANT’ANNA, 1993, p. 74.
[9] CLARK, T. J. “A escolha de Olympia”. In: A pintura da vida moderna: Paris na arte de Manet e de seus seguidores. Tradução José Geraldo Couto. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, pp. 129-209.
[10] Idem, ibidem: p. 185.
[11] Idem, ibidem: p. 182.
[12] Idem, ibidem: p. 165.
[13] PRIORE, Mary Del. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidade e mentalidade no Brasil Colônia. 2ª ed. São Paulo: Editora UNESP, 2009, pp. 40-1.
[14] Idem, ibidem: p. 41.
[15] FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos. 15 ª ed. São Paulo: Global, 2004.
[16] BANDEIRA, Manuel. “Raimundo Correia e seu sortilégio verbal”. In: CORREIA, Raimundo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1961, p. 18-9.

sábado, 9 de agosto de 2014

A obsolescência do professor de Literatura



Como professor de Literatura, estou prestes a me tornar tecnologia obsoleta. Isso mesmo: prevejo que, a médio prazo (em pouco mais de uma década, talvez menos), não haverá mais, nas escolas de todo o país, a figura do professor especializado no ensino de Literatura. O motivo é a ascensão do ENEM como o principal exame de seleção de candidatos ao Ensino Superior, o que tende a impactar a organização das escolas de Ensino Médio, voltadas, via de regra, à preparação dos alunos para o ingresso nas instituições universitárias. Isso porque, como demonstrou Luís Augusto Fischer, as questões de Literatura do ENEM tendem a cobrar mais a interpretação do texto literário (“literatura-leitura”) do que sua compreensão como elemento de uma rede de referências inter-relacionadas à qual damos o nome de tradição literária (“literatura-cultura”, nas palavras de Fischer). Segundo o professor da UFRGS, a literatura como campo autônomo do âmbito da cultura — com suas especificidades linguísticas, estéticas e históricas —, estaria sendo negligenciada por uma abordagem instrumental que pouco distingue entre um texto literário e um jornalístico. O que importa é que o aluno consiga apreender adequadamente o significado do que foi lido, não se exigindo dele que considere a literatura como um sistema com determinantes e história próprias.

Tal tendência verificada no ENEM, obviamente, não surgiu do nada. Ela reflete os princípios estabelecidos nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s), que, desde 1996, oferecem as diretrizes à organização dos currículos escolares em território nacional. Neles, os estudos literários aparecem incluídos na área de Linguagem, Códigos e suas Tecnologias, mesclados com gramática, intelecção, produção de texto e outros quejandos. A proposta é justamente a fusão de conteúdos, como fica claro no seguinte fragmento:

A disciplina na LDB nº 5.692/71 vinha dicotomizada em Língua e Literatura (com ênfase em literatura brasileira). A divisão repercutiu na organização curricular: a separação entre gramática, estudos literários e redação. Os livros didáticos, em geral, e mesmo vestibulares, reproduziram modelo de divisão. Muitas escolas mantêm professores especialistas para cada tema e até aulas específicas como se leitura/literatura, estudos gramaticais e produção de texto não tivessem relação entre si. (grifo meu)

Seguindo os princípios norteadores dos PCN’s, o MEC criou um projeto de reforma do Ensino Médio, segundo o qual a divisão do conteúdo curricular em disciplinas daria lugar à organização em quatro grandes áreas: Ciências Humanas, Ciências da Natureza, Linguagem e Matemática, que é como o ENEM é dividido. A reforma deve pautar obrigatoriamente o currículo das escolas públicas, ao passo que, para as escolas particulares, será facultativa. Permanecendo o quadro que tínhamos antes, o mais provável é que as escolas particulares mantivessem seus currículos como estão; contudo, com a transformação do ENEM na porta de entrada para a grande maioria das universidades federais, a tendência é que tais escolas adiram ao novo modelo, a não ser que o prestígio de algumas grandes instituições estaduais seja o suficiente para que estas, sozinhas, determinem a forma do currículo do Ensino Médio privado, o que eu, pessoalmente, acho difícil. A tendência é que, embora com muita resistência, essas instituições acabem dobrando-se às novas circunstâncias, ou então que, ao lado de um Ensino Médio reformado, multipliquem-se os cursinhos especializados nos vestibulares das universidades que insistirem no modelo atual.

Imagino que o resultado dessa mudança será a diluição do conteúdo hoje ensinado em Literatura no conteúdo propriamente linguístico. Assim, utilizar-se-ia o texto literário como suporte para atividades como as de interpretação, análise gramatical e redação, acompanhadas de algumas informações de natureza histórica e biográfica sobre a obra e o escritor. Por sua vez, o conhecimento técnico-teórico acerca do objeto literário poderia muito bem ser incorporado às atividades de produção de texto. Consequentemente, haveria uma preferência pela utilização de fragmentos e textos curtos, como crônicas, poemas, letras de música etc., e um aluno poderia terminar o Ensino Médio e ingressar no Superior sem nunca ter lido um livro inteiro (algo que o ENEM, que não possui uma lista de leituras obrigatórias, já possibilita). Parece lamentável, não? Talvez não seja.

Em primeiro lugar, é preciso considerar que o currículo do Ensino Médio possui um volume acachapante de informações. O conteúdo é muito extenso e em grande parte irrelevante para os alunos que não pretendem especializar-se em determinadas áreas, incluindo aqui a Literatura. E o pior: diante da necessidade de se incorporar ao currículo um novo conteúdo, a tendência é criar novas disciplinas, levando não só a uma saturação de informações, como também a um aumento da carga horária e dos custos da educação, tanto no setor privado quanto no público. Uma opção mais viável, a meu ver, seria que esse novo conteúdo fosse tratado de maneira transversal e abordado em diferentes disciplinas de acordo com suas afinidades e interseções com os conteúdos já estabelecidos.

A verdade é que o ensino de Literatura nas escolas de Ensino Médio atende hoje a um objetivo muito específico e simplista: preparar o aluno para o ingresso nas instituições universitárias do país, por isso a mudança nos meios de seleção provavelmente causará sobre ele um impacto devastador. Mesmo nos melhores colégios e nos materiais didáticos mais prestigiados, prevalece o contato com paráfrases e fragmentos, sem que o aluno desenvolva familiaridade com o texto literário propriamente dito. Quando é exigida a leitura de uma obra mais extensa, geralmente o que se procura fazer é chamar a atenção para aqueles aspectos que têm maior chance de serem cobrados numa prova de vestibular, ou seja: os alunos leem para responder questionários (quando leem). E não estou falando apenas de uma questão de ênfase naqueles conteúdos mais caros ao vestibular, mas da própria estrutura da disciplina, que determina desde o que é ensinado até a elaboração do material didático e a abordagem do professor em sala de aula. Aliás, a situação transcende o âmbito do processo ensino/aprendizagem, pois envolve uma série de expectativas sociais da parte dos administradores de escola, das famílias e dos próprios alunos. O professor que deseja escapar do esquema utilitário voltado ao vestibular tem quase tudo contra si. É claro, estou falando do contexto das escolas particulares, que é o que conheço mais de perto.

Pela maneira como o ensino de Literatura configura-se hoje, ouso dizer que não fará muita falta quando (ou se) for abolido. Mas isso não significa dizer que a literatura seja irrelevante ou que ela não tenha com o que contribuir na formação intelectual e mesmo afetiva de nossos jovens. Se quisermos realmente insistir na manutenção da disciplina na grade curricular do Ensino Médio, temos de nos questionar por que ensinar Literatura. Ou melhor: qual a importância da literatura na formação dos indivíduos? Apenas respondendo a essas perguntas poderemos orientar nossas práticas pedagógicas em direção a uma abordagem mais enriquecedora do texto literário, o que é, certamente, assunto para um próximo post.

sábado, 2 de agosto de 2014

Desconversando sobre literatura: o ensino de Literatura de acordo com os PCN's


Estou escrevendo um texto que pretende ser uma reflexão sobre o ensino de Literatura. Durante as pesquisas para escrevê-lo, recorri, previsivelmente, aos Parâmetros Curriculares Nacionais (doravante PCN’s), que estabelecem as diretrizes que orientam a educação no Brasil. Encontrei lá algumas coisas que não conseguirei deixar de discutir, por isso resolvi escrever o texto presente, para não saturar demasiadamente o outro. O que me chamou a atenção está nos seguintes parágrafos:

Os estudos literários seguem o mesmo caminho. A história da literatura costuma ser o foco da compreensão do texto; uma história que nem sempre corresponde ao texto que lhe serve de exemplo. O conceito de texto literário é discutível. Machado de Assis é literatura, Paulo Coelho não. Por quê? As explicações não fazem sentido para o aluno.
Outra situação de sala de aula pode ser mencionada. Solicitamos que os alunos separassem de um bloco de textos, que iam desde poemas de Pessoa e Drummond até contas de telefone e cartas de banco, textos literários e não-literários, de acordo como são definidos. Um dos grupos não fez qualquer separação. Questionados, os alunos responderam: “Todos são não-literários, pois servem apenas para fazer exercícios na escola.” E Drummond? Responderam: “Drummond é literato, porque vocês afirmam que é, eu não concordo. Acho ele um chato. Por que Zé Ramalho não é literatura? Ambos são poetas, não é verdade?”.

Tenho uma hipótese de por que as explicações não fazem sentido para os alunos. Eles não conseguem entender por que Machado é literatura e Paulo Coelho, não, simplesmente porque ambos são literatura. Tanto a obra do bruxo de Cosme Velho quanto a do mago das letras contemporâneas são de natureza literária. Há uma confusão aqui entre literatura (objeto) e Literatura (disciplina). A primeira representa o conjunto dos textos literários, a segunda, a organização dos conhecimentos acerca da literatura numa unidade curricular, com uma função didática. Diante da falta de entendimento do aluno pela ausência de um Paulo Coelho no currículo escolar, o professor deveria explicar que a literatura não se resume àquilo o que se estuda nas aulas de Literatura. Em seguida, deveria ensiná-los que, devido à impossibilidade de se abordar todas as obras no período limitado da formação escolar, é necessário fazer uma seleção que responde a certos critérios e, se for caso, expor quais são. É importante apontar que esses critérios, ainda que arbitrários, não são aleatórios. Talvez aí a explicação comece a fazer algum sentido.

É curioso que os autores dos PCN’s confundam a “discutibilidade” do conceito de literatura, que é uma questão teórica, com a arbitrariedade na composição do corpus das obras que compõem o currículo escolar, o que é uma questão didática. Sabe-se que não há um conceito fechado sobre o que é a tal da literariedade (o conjunto de características que definem um texto como literário), mas existe, sim, uma noção historicamente construída sobre o que pode ser considerado literatura. Por exemplo: ninguém discute que a Divina comédia, de Dante Alighieri, é uma obra literária, porém é possível discutir se a carta de Pero Vaz de Caminha relatando a descoberta do Brasil possui ou não uma dimensão literária. Pode-se discutir, também, se o Manifesto comunista possui algum componente literário, dificilmente, no entanto, ocorrerá a alguém dizer que se trata de um texto literário em sentido estrito. Isso é muito diferente de adotar um relativismo conceitual absoluto, que parece ser o que os autores sugerem. Já a discussão sobre a composição dos currículos de Literatura, embora subordinada à discussão teórica acerca do que é a literariedade, responde a critérios que não se limitam ao âmbito literário; ela se dá tendo em vista a função social da literatura e as expectativas que temos em relação ao ensino da Literatura. Mudando tais expectativas, mudam os critérios que determinam a seleção das obras.

Outro problema no que dizem os autores está na possibilidade de eleição do subjetivismo, do gosto pessoal, como critério de seleção das obras estudadas. O fato de os alunos acharem Drummond “um chato” não anula outro fato, este mais importante, de que o poeta itabirano é um dos escritores mais relevantes da literatura brasileira e que sua ausência no currículo escolar acarretaria uma grande falha na formação cultural dos estudantes. Creio que Matemática seja uma das matérias mais impopulares. Contudo, não passa pela cabeça de ninguém excluí-la do currículo do Ensino Básico. Não seria ridículo, para dar outro exemplo, excluir citologia do currículo de Biologia apenas porque os alunos, porventura, achem tal conteúdo “chato”? Os alunos estão em processo de formação; isso quer dizer que ainda não detêm o conhecimento que lhes permita discernir o que será ou não necessário para seu futuro ou reconhecer quais são as expectativas que a sociedade nutre em relação a um indivíduo escolarizado. A responsabilidade de filtrar o que, entre as informações existentes, é pertinente aos alunos — de acordo com seu nível de escolaridade — é das instituições educacionais.

Mas então quais são os critérios que determinam os escritores estudados no Ensino Básico? O irônico é que é justamente isso o que eu esperava encontrar num documento que tem por objetivo orientar a composição do currículo nacional...

É possível discernir vários critérios, o mais óbvio deles é o fato de as obras estudadas se limitarem geralmente às escritas em língua portuguesa, como forma de propiciar uma identificação com a cultura e a história nacionais, e gerar um conhecimento sobre estas, além de auxiliar no domínio da língua materna, apresentando aos alunos algo do que de melhor já foi produzido em português. Outro critério passa pela constituição de uma tradição literária: as obras, ao serem produzidas, costumam estabelecer um diálogo com aquelas que lhe antecederam, de modo a tomá-las como referência e inspiração. Cria-se assim um sistema inteligível de relações que, mais ou menos fechado, permite apreender de maneira eficiente a evolução (ou desenvolvimento) de uma determinada série literária através da história. Nas aulas de Literatura, as obras costumam ser consideradas a partir de suas relações com o conjunto dos textos literários aos quais elas se remetem de maneira mais imediata. Um terceiro critério que pode ser apontado diz respeito menos à literatura em si do que à dinâmica do campo acadêmico dos estudos literários: obras mais estudadas por especialistas adquirem maior visibilidade no meio intelectual e deixam atrás de si uma fortuna crítica que estabelece parâmetros confiáveis de leitura e, com o passar do tempo, passam a integrar o currículo do Ensino Básico.

Como já foi dito, tais critérios são arbitrários e podem ser discutidos, modificados e até mesmo substituídos, mas eles existem. A seleção das obras estudadas não resulta apenas do capricho dos professores e dos estudiosos. Entretanto, há um critério que considero o mais importante e que deveria subjazer a todos os outros.

Segundo Ezra Pound em ABC da Literatura, “Literatura é linguagem carregada de significado”, sendo que “grande literatura é simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível” (POUND, s.d., p. 32). Partindo da ideia de que, na obra literária, o signo linguístico assume uma dimensão “plurissignificante” (isto é, apresenta a capacidade de se desdobrar em diversos significados), podemos dizer que maior é a qualidade de um texto quanto mais possibilidades de leitura ele permita, ou quanto mais níveis de compreensão ele apresente. É isso o que explica que certas obras sejam estudadas sistematicamente por séculos sem que se esgote o que elas têm a dizer, suscitando o interesse do público de diferentes épocas. Quando selecionamos os autores que serão estudados pelos alunos, devemos dar preferência àqueles cuja obra traga maior gama de virtualidades interpretativas. Assim distinguimos um Machado de Assis de um Paulo Coelho, ou um Drummond de um Zé Ramalho. E como o educador pode saber quais são os textos mais produtivos, semanticamente falando? Espera-se que um professor da área de linguagem tenha proficiência na interpretação de textos e certa familiaridade com a tradição de estudos das obras literárias, o que lhe permitiria perceber quais obras representarão um ganho efetivo de aprendizagem para o aluno.

Por mais que a ênfase na “alta literatura” possa ser confundida com esnobismo intelectual, não se pode ignorar que uma das funções da escola é apresentar ao aluno referências com as quais ele ainda não possui familiaridade, permitindo-lhe ampliar sua visão de mundo. É demagógica uma valorização da cultura popular que exclua o contato com produtos culturais mais complexos e sofisticados. Os alunos não precisam da escola para conhecer as canções de Zé Ramalho (que vira e mexe fazem parte da trilha sonora de telenovelas de grande audiência), mas, infelizmente, o mesmo não pode ser dito da poesia drummondiana. Sem falar que, para se ler Drummond, exigem-se competências de leitura mais avançadas do que as necessárias à compreensão de um texto ficcional cuja única finalidade é o entretenimento, competências que cabem aos educadores ajudar a desenvolver. Privar os alunos do contato com o que de mais sofisticado nossa literatura já produziu é também uma forma de exclusão, de natureza intelectual e cultural. É negar ao estudante a possibilidade de se aprimorar linguística, cognitiva e mesmo emocionalmente, pois a literatura pode desempenhar um papel importante na formação afetiva dos indivíduos.

Está claro que a proposta pedagógica por trás dos PCN’s passa pela integração das atuais disciplinas numa unidade curricular maior, chamada de “área” (no caso, Literatura, Gramática e Produção de Texto, assim como línguas estrangeiras e — pasmem! — Educação Física, comporiam a área de Linguagem). Contudo, a abordagem equivocada e superficial dada pelos autores à literatura mostra a falta que faz um conhecimento pouco mais delimitado sobre o assunto... Não há qualquer indicação no sentido de se considerar o que o texto literário possui de específico e que o distingue, por exemplo, de uma conta de luz ou de uma bula de remédio. Ao que parece, os autores subscrevem tal confusão. Tratada de forma indistinta em relação às demais manifestações linguísticas (restrita à função de transmitir uma mensagem), a literatura perde a maior parte de seu potencial formativo.

sexta-feira, 14 de março de 2014

Aí vem o "Pavão bizarro"


Nos próximos meses, estarei publicando pela Editora Patuá meu primeiro livro de poesia, chamado Pavão bizarro. Ele é composto por 39 poemas, escritos em sua grande maioria entre os anos de 2006 e 2014 (cerca de cinco deles são um pouco anteriores). A princípio, o objetivo era simplesmente dominar os meios técnicos da escrita, o que explica certa experimentação gratuita com as formas e uma ênfase na metalinguagem. Com o passar do tempo, no entanto, fui verificando que alguns poemas já eram mais do que meros exercícios técnico-formais e que o conjunto apresentava uma consistência que justificava sua publicação. Não posso dizer que, ainda hoje, os poemas do livro representem integralmente meu pensamento e minha concepção de poesia, mas eles registram um longo e por vezes árduo percurso, incluindo a superação de longos períodos em que me achava completamente inapto a continuar escrevendo qualquer coisa que não fosse crítica literária. Publicar o Pavão bizarro, de certa maneira, é limpar o terreno para novos projetos, novas preocupações... Mas não foi um processo fácil encontrar os meios para publicá-lo. Nesse sentido, só tenho a agradecer à Editora Patuá, que tem aberto espaço para novos autores ou autores menos conhecidos do público, com um catálogo recheado de títulos de poesia (coisa muito rara em nosso mercado editorial).

Pavão Bizarro, cujo projeto editorial é de Eduardo Lacerda, conta ainda com a ilustração de Leonardo Mathias na capa e com um prefácio finíssimo escrito por Fábio César Alves. O livro já está disponível para venda no site da editora, como pré-lançamento. Segue um aperitivo:

O anjo torto

Por natureza, os
anjos são seres
etéreos, frágeis
corpos de matéria
luminosa (róseos
fogos-fátuos); vide
os querubins de Rafael.

Mas não este que
Antônio Francisco
Lisboa, vulgo
Aleijadinho, arrancou
das entranhas da pedra
— em vez de asas, grossas
raízes lhe brotam das costas.

Será este o anjo torto
que vaticinou de Drummond,
já no nascimento, a malfadada sina?

Um anjo canhestro que
a própria terra, ruminando,
teceu na trama de suas trevas,
e coube ao artista fazer o parto
de seu corpo espesso e compacto,
irredutível às puras essências
do espírito; espúria
matéria escura.

Para ler mais alguns poemas e/ou comprar o livro (que só poderá ser adquirido pela página da editora na internet), clique AQUI.

domingo, 9 de março de 2014

O jogo de interesses ocultos na trama de "Pierre Menard, autor del Quijote"



O conceito de ideologia não afirma que todo o espírito serve apenas para que alguns homens eventualmente escamoteiem eventuais interesses particulares, fazendo-os passar por universais, mas sim quer desmascarar o espírito determinado a ser falso e, ao mesmo tempo, apreendê-lo conceitualmente em sua necessidade. (ADORNO, 2003, p. 68)

No último parágrafo de “Pierre Menard, autor del Quijote”[2], o narrador sugere que a empreitada de Menard em reescrever o Dom Quijote de Cervantes, enriquece, por meio de uma técnica nova — “la técnica del anacronismo deliberado y de las atribuciones erróneas” —, a arte da leitura: “Esa técnica puebla de aventura los libros más calmosos. Atribuir a Louis Ferdinand Céline o a James Joyce la Imitación de Cristo ¿no es una suficiente renovación de esos tenues avisos espirituales?” (p. 55). Partindo dessa premissa, proponho a seguinte questão: é possível ler o conto “Pierre Menard”, de Jorge Luis Borges, como se fora escrito por Machado de Assis? Explico-me: neste trabalho, pretendo interpretar o conto borgiano a partir da consideração de certos procedimentos literários familiares aos leitores de Machado de Assis. Mais especificamente, pretendo interpretá-lo à luz do instrumental teórico e metodológico mobilizado por Roberto Schwarz em suas leituras do autor de Memórias póstumas de Brás Cubas.

O primeiro aspecto que discutirei é a construção do narrador, que apresenta traços de um narrador não confiável, ou narrador posto em situação. Trata-se da constituição de um ponto de vista narrativo que, como parte especialmente interessada na situação narrada ou tão comprometida com ela a ponto de se tornar incapaz de apresentar uma visão objetiva dos fatos, exige que o leitor se mantenha sempre com o pé-atrás, como ocorre com Bento Santiago, narrador de Dom Casmurro (SCHWARZ, 1997, p. 12). No primeiro parágrafo de “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, primeiro conto de Ficciones e que antecede “Pierre Menard”, encontramos uma descrição de tal procedimento:

Bioy Casares había cenado conmigo esa noche y nos demoró una vasta polémica sobre la ejecución de una novela en primera persona, cuyo narrador omitiera o desfigurara los hechos e incurriera en diversas contradicciones, que permitieran a unos pocos lectores — a muy pocos lectores — la adivinación de una  realidad atroz o banal. (p. 16)

Acredito que tal descrição se adéqua ao narrador de “Pierre Menard”, figura de caráter questionável, que coloca sob suspeita a trama do conto, inclusive a possibilidade de que o protagonista da história tenha obtido sucesso, ainda que parcial, em sua impossível tarefa. Entretanto, assim como em Dom Casmurro a polêmica sobre a traição de Capitu desvia o foco da questão principal — a construção de um narrador interessado em convencer o leitor da culpa de sua esposa —, o objetivo deste trabalho não é afirmar que o conto borgiano apresenta uma farsa e que Pierre Menard não teria escrito os fragmentos de Dom Quixote atribuídos a ele pelo narrador, mesmo porque o texto não traz dados conclusivos a esse respeito. Meu intuito é demonstrar como a trama se constrói a partir de uma perspectiva não confiável, ao que se soma o caráter volúvel da personagem principal (que veremos num segundo momento da análise), tornando os fatos narrados cada vez mais incríveis, com todas as nuances de sentido que tal palavra possa conter.


O narrador

Sabemos que o narrador integra o círculo literário do qual fazia parte Pierre Menard, arvorando-se defensor da memória do amigo morto, injustiçado, segundo ele, por um catálogo “falaz” confeccionado por Madame Bachelier, repleto de omissões e adições. O narrador então decide ele mesmo reparar tal injustiça, escrevendo outro catálogo, do qual conste não apenas a obra “visível” do escritor, a conhecida pelo público, como também sua obra “invisível”, que consiste na reescritura milagrosa de Dom Quixote. Já no primeiro parágrafo, porém, o narrador expõe traços nada louváveis de caráter:

         La obra visible que ha dejado este novelista [Pierre Menard] es de fácil y breve enumeración. Son, por lo tanto, imperdonables las omisiones y adiciones perpetradas por Madame Henri Bachelier en un catálogo falaz que cierto diario cuya tendencia protestante no es un secreto ha tenido la desconsideración de inferir a sus deplorables lectores — si bien estos son pocos y calvinistas, cuando no masones y circuncisos. (grifo do autor — p. 41)

Aos olhos do narrador, a tendência protestante deprecia o jornal, que se destina a leitores “deploráveis”, entre os quais estão listados calvinistas, maçons e judeus, acrescentando uma nota antissemita ao preconceito religioso. Como se sabe, preconceitos são obstáculos para uma apreciação mais isenta da realidade e, uma vez que o narrador os evidencia tão claramente, e nas primeiras frases de seu relato, deveria deixar o leitor de prontidão logo de saída. E o parágrafo continua:

Los amigos auténticos de Menard han visto con alarma ese catálogo y con cierta tristeza. Diríase que ayer nos reunimos ante el mármol final y entre los cipreses infaustos y ya el Error trata de empañar su Memoria... Decididamente, una breve rectificación es inevitable. (Idem)

Reparemos na retórica vazia, repleta de lugares-comuns detestáveis, como “mármol final”, “cipreses infaustos”, as palavras error e memoria grafadas com maiúsculas, revelando uma linguagem beletrista, empostada e caricata — postiça, poderíamos dizer. Se a perspectiva do narrador, que manifesta uma série de preconceitos, não instaura uma coordenada confiável para a leitura, o mesmo acontece com seu instrumento de análise, a linguagem, que parece perseguir o efeito fácil e banal. O passo seguinte é o reconhecimento retórico da pouca autoridade do narrador, que se apoia em figuras da alta sociedade para avalizar seu relato:

         Me consta que es muy fácil recusar mi pobre autoridad. Espero, sin embargo, que no me prohibirán mencionar dos altos testimonios. La baronesa de Bacourt (en cuyos vendredis inolvidables tuve el honor de conocer al llorado poeta) ha tenido a bien aprobar las líneas que siguen. La condesa de Bagnoregio, uno de los espíritus más finos del principado de Mónaco (y ahora de Pittsburg, Pennsylvania, después de su reciente boda con el filántropo internacional Simón Kautzsch, tan calumniado, ¡ay!, por las víctimas de sus desinteresadas maniobras) ha sacrificado “a la veracidad y a la muerte” (tales son sus palabras) la señoril reserva que la distingue y en una carta abierta publicada en la revista Luxe me concede asimismo su beneplácito. Esas ejecutorias, creo, no son insuficientes. (p. 42)

Como forma de retribuir a confiança dos poderosos e garantir que esta não lhe falte, o narrador carrega na politesse, empregando uma linguagem adulatória que ultrapassa os limites do bom gosto. A autoridade que o narrador trata de angariar não é de ordem intelectual, mas social e econômica, tanto que o nome da revista na qual a condessa publica seu apoio, Luxe, sugere uma publicação especializada no estilo de vida e nos hábitos de consumo das classes abastadas. Entretanto, a credibilidade do testemunho invocado é colocada em xeque no próprio movimento do discurso. A condessa de Bagnoregio é casada com o “filantropo internacional” Simón Kautzsch, mas como pode ser considerado filantropo alguém cujas “manobras” causam “vítimas”? E, se tais manobras causam prejuízo a outrem, como considerá-las “desinteressadas”? Acrescente-se a isso a afetação da interjeição “¡ay!”, e começamos a perceber que o narrador usa de ironia para caracterizar seu círculo social. A defesa do suposto filantropo é, na verdade, uma acusação enviesada. O narrador mente de forma descarada, exagerando no tom e nos trejeitos, deixando pistas de sua falsidade intencional. Toda a narrativa de “Pierre Menard”, como pretendo demonstrar, baseia-se no esforço sistemático de, sucessivamente, escamotear e desvelar interesses, como aparece pontualmente no caso do esboço que o narrador traça de Kautzsch.

Sobre a condessa, por sua vez, o narrador aponta que ela anualmente faz publicar uma revista com o objetivo de “rectificar los inevitables falseos del periodismo y presentar ‘al mundo y a Italia’ una auténtica efigie de su persona, tan expuesta (en razón misma de su belleza y de su actuación) a interpretaciones erróneas o apresuradas” (p. 45). Assim como seu marido é caluniado por suas “manobras desinteressadas”, a condessa de Bagnoregio é exposta à calúnia dos jornalistas, na razão direta de sua atuação. O narrador, como que inadvertidamente, sugere indícios que suscitam dúvidas sobre a integridade moral da condessa, ao mesmo tempo em que louva sua beleza, travestindo de galanteio suas insinuações. Portanto, o narrador afiança a credibilidade de seu relato evocando o testemunho de uma pessoa que, como ele próprio acaba indicando, não merece muita credibilidade. Neste ponto, damo-nos conta que não há nenhuma coordenada confiável na narrativa e que estamos à mercê de um narrador cheio de subterfúgios.

Mas — devemos nos perguntar — por que o narrador mente? A detração implícita da condessa e do marido demonstra uma consciência crítica em relação ao comportamento das pessoas de seu círculo. Tal consciência, porém, é expressa apenas de maneira indireta, lançando mão da ironia. O que exatamente faz com que o narrador precise dissimular seus pensamentos e adular, ainda que da boca para fora e por meio de uma retórica vazia, figuras pelas quais sente indisfarçada repulsa?

Vimos que o narrador conheceu Pierre Menard num evento semanal promovido pela baronesa; ele também cita a revista anual financiada pela condessa, que Gabriele d’Annunzio, um colaborador, num rasgo de eloquência, denominou como “victorioso volumen” (p. 45). Ao que parece, trata-se de um grupo de eruditos cujas atividades intelectuais estão ligadas ao patrocínio de figuras remanescentes da nobreza europeia. De um lado, temos esses membros da nobreza, financiando as artes e a cultura, garantindo assim algum prestígio intelectual, para não falar da dívida de gratidão dos homens de letras; do outro lado, temos esses mesmos homens de letras, que encontram no aporte financeiro da nobreza as condições para exercer suas atividades, obtendo, por sua vez, prestígio social. É uma troca de favores. A condessa faz publicar sua revista como maneira de “retificar” as calúnias que a imprensa escreve sobre ela. Como seus colegas que colaboram com a revista, o narrador parece implicado, ao menos publicamente, com o nome da condessa, mesmo suspeitando não serem tão caluniosos assim os ataques que a imprensa lhe reserva.

Vimos, numa passagem anterior, que o narrador procura se amparar no prestígio de suas benfeitoras para justificar sua autoridade, o que significa que, para obter alguma visibilidade social para seu trabalho, é preciso que ele se comprometa com os interesses das duas, obrigando-se a assumir uma atitude subalterna. Como exemplo dessa atitude, podemos citar a nota na qual ele afirma não se “atrever” a competir com “las páginas áureas” que a baronesa de Bacourt prepara a respeito de Menard (p. 46), colocando, mais uma vez, o exagero retórico a serviço de angariar a simpatia dos poderosos.

Desde o primeiro parágrafo do conto, o narrador cuida de circunscrever a si e a seus próximos entre os “amigos autênticos” de Menard, reivindicando para seu grupo exclusividade sobre a obra do escritor morto. Em última instância, trata-se de garantir algum prestígio, por isso a manifestação de rivalidade em relação à Madame Henri Bachelier, que parece disputar com o círculo literário do narrador o espólio intelectual, talvez modesto (a julgar pelo conjunto da obra), de Menard. Além de denegrir o catálogo da baronesa, chamando-o de “falaz” e rebaixando o público ao qual se destina, o narrador ainda tem a delicadeza de omitir de seu próprio catálogo os sonetos “circunstanciales” que Menard dedicou ao “hospitalario, o ávido, álbum de Madame Bachalier” (p. 45). No último parágrafo do conto, o narrador reserva mais uma alfinetada à baronesa, dizendo que o prodigioso esforço de Menard em reescrever Dom Quixote possibilita que se leia “Le jardin Du Centaure de Madame Henri Bachelier como si fuera de Madame Henri Bachelier” (p. 55), insuflando dúvidas a respeito da autoria do livro (e como não se lembrar da passagem de Dom Casmurro em que o narrador justifica o título do livro com base no apelido que lhe dera o poeta do trem? — “O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto”).

O narrador de “Pierre Menard” representa um perfil sócio-psicológico definido: o do homem de letras dependente do favor dos poderosos. Como tal, está disposto a compensar a consciência da precariedade de sua posição com expedientes que lhe preservem o orgulho e rendam alguma satisfação subjetiva, a despeito das circunstâncias criadas por sua situação de dependência. O favor consiste num mecanismo de dominação social destinado a preservar a autoestima do favorecido, à medida que este enxergue naquele uma forma de reconhecimento de seu valor pessoal[3]. O narrador parece se valer desse mecanismo ao exibir como credenciais o aval da baronesa de Bacourt e da condessa de Bagnoregio. Entretanto, ele não perde de vista as conveniências por trás da benevolência da condessa, nem deixa de mencionar a origem possivelmente escusa dos recursos empregados (dinheiro, podemos supor, advindo das desinteressadas manobras de seu esposo). O narrador se agarra ferozmente a seu orgulho, o que talvez explique o prazer com que ele espalha insinuações sobre a conduta de seus benfeitores. Ridicularizar seus benfeitores sem que eles percebam, enquanto finge louvá-los, eis uma forma de afirmar sobre eles uma superioridade intelectual. Inclusive, a retórica empolada verificada em certos trechos, repleta de clichês, pode ser compreendida como uma maneira de assegurar o reconhecimento imediato de um público para o qual a cultura possui um valor meramente ornamental. A dinâmica de classes sociais apresentada na trama funciona como vetor de configuração dos elementos da composição literária, ditando inclusive os traços estilísticos da obra.

Além de preconceituoso, bajulador e cínico, o narrador é hipócrita, fingindo defender publicamente a conduta de pessoas cujo comportamento intimamente condena. É essa figura que nos relata o feito extraordinário de Pierre Menard; contamos apenas com sua palavra como garantia da milagrosa reescritura dos fragmentos do Dom Quixote. Isso já seria o suficiente para que lêssemos seu relato com reservas, mas ainda é necessário questionar: o narrador teria algum interesse na história contada? Obteria alguma vantagem mentindo? Como vimos em relação à diatribe com Madame Bachelier, o narrador procura vincular-se à imagem de Pierre Menard com a finalidade de tirar uma casquinha de seu prestígio literário. No entanto, conforme a relação da obra visível de Menard permite supor, esse prestígio não há de ser dos maiores, dado o volume e a relevância da obra. Mais vantajoso então seria atribuir a Menard a execução de uma obra miraculosa e sem precedentes, “interminablemente heroica” e “tal vez la más significativa de nuestro tiempo” (p. 45). Claro, estou especulando. Mas o fato é que, mesmo descontando os prováveis interesses que o narrador possa ter nos fatos contados, ainda assim não teríamos motivos para confiar em seu relato, devido ao caráter duvidoso apresentado por ele desde o primeiro parágrafo da narrativa.


Pierre Menard
           
Se precisamos nos prevenir quanto ao caráter do narrador, algo semelhante acontece com o protagonista da história. No prólogo de Ficciones, Borges afirma que a listagem das obras de Menard serve como um “diagrama de su historia mental” (p. 2). Como não estou capacitado para avaliar em profundidade o significado de todas essas obras, nem é este o objetivo deste trabalho, satisfaço-me em apontar algumas delas, tentando delinear alguns traços do caráter de Menard:

e) Un artículo técnico sobre la posibilidad de enriquecer el ajedrez eliminando uno de los peones de torre. Menard propone, recomienda, discute y acaba por rechazar esa innovación.
(...)
p) Una invectiva contra Paul Valéry, en las Hojas para la superación de la realidad de Jacques Reboul. (Esa invectiva, dicho sea entre paréntesis, es el reverso exacto de su verdadera opinión sobre Valéry. Este así lo entendió y la amistad antigua de los dos no corrió peligro.) (pp. 43-4)

Estas amostras permitem ver que Menard não tinha problemas em exprimir ideias que não correspondiam a sua verdadeira opinião, além de indicar uma facilidade em defender, com o mesmo empenho, pontos de vista opostos. A respeito disso, páginas adiante, o narrador menciona a “casi divina modestia de Pierre Menard”, que consistia justamente em “su hábito resignado o irónico de propagar ideas que eran el estricto reverso de las preferidas por él” (p. 52). Numa nota de rodapé à lista de suas obras, ficamos sabendo que Menard também era dado a brincadeiras que podiam gerar equívocos entre os ouvintes:

¹ Madame Henri Bachelier enumera asimismo una versión literal de la versión literal que hizo Quevedo de la Introduction à la vie devote de san Francisco de Sales. En la biblioteca de Pierre Menard no hay rastros de tal obra. Debe tratarse de una broma de nuestro amigo, mal escuchada. (p. 45)

Tal referência, além de servir de pretexto para que o narrador menospreze mais uma vez o catálogo de Madame Bachelier, traz um dado interessante. Como não foi encontrado nenhum rastro da transcrição de Quevedo na biblioteca do escritor, o narrador sugere que tudo não tenha passado de uma troça. Entretanto, também não há qualquer vestígio da reescritura de Dom Quixote, a não ser o produto final: os nono e trigésimo oitavo capítulos da primeira parte do romance de Cervantes, além de um fragmento do capítulo vinte e dois, idênticos, linha por linha, ao texto original. Isso porque, apesar do rigoroso método que estabeleceu para cumprir sua tarefa — que, segundo o trecho de uma carta sua, transcrita pelo narrador, consistia em “ensayar variantes de tipo formal o psicológico” para depois “sacrificarlas al texto original y a razonar de un modo irrefutable esa aniquilación” (p. 50) —, Menard decidiu “perder” voluntariamente os esboços de sua obra, tanto que o narrador se queixa: “En efecto, no queda un solo borrador que atestigüe ese trabajo de años” (p. 47). Ora, se a ausência de rastros na biblioteca do escritor é motivo suficiente para que o narrador descarte a existência da transcrição da transcrição de Quevedo, o que atesta a veracidade da “obra invisível” de Menard, a não ser algumas páginas absolutamente idênticas ao original cervantino? O narrador, portanto, emprega dois pesos e duas medidas.

Em outra nota de rodapé, o narrador afirma recordar-se dos cadernos quadriculados de Menard, que este costumava queimar em suas caminhadas, fazendo com eles “una alegre fogata” (p. 54). Analisando friamente, tudo o que temos são as palavras de um narrador nada confiável e as cartas deixadas por um escritor que tinha a “divina modéstia” de sempre dizer o contrário do que pensava. Como narrador e protagonista mentem de maneira sistemática, não há como saber com certeza se os eventos narrados de fato aconteceram. Tudo não passaria de uma fraude? Impossível afirmar, mas é provável. Para aquilatar o perfil de Menard, passemos mais uma vez os olhos sobre a lista de suas obras:

q) Una “definición” de la condesa de Bagnoregio, en el “victorioso volumen” — la locución es de otro colaborador, Gabriele d’Annunzio — que anualmente publica esta dama para rectificar los inevitables falseos del periodismo y presentar ‘al mundo y a Italia’ una auténtica efigie de su persona, tan expuesta (en razón misma de su belleza y de su actuación) a interpretaciones erróneas o apresuradas.
r) Un ciclo de admirables sonetos para la baronesa de Bacourt (1934). (p. 45)

Menard está envolvido na mesma rede de interesses que o narrador do conto, rendendo homenagem às duas caridosas damas da nobreza. Entretanto, isso não devia representar grandes problemas para ele, que parece manifestar um talento natural para a dissimulação e para a volubilidade. Não devemos confundir tal volubilidade com aquela que Roberto Schwarz identifica no narrador de Memórias póstumas de Brás Cubas. A volubilidade de Brás Cubas está relacionada com a situação das elites brasileiras de seu tempo, que aderiam à ideologia política de prestígio na época, o liberalismo, ao mesmo tempo em que se beneficiavam da exploração do trabalho escravo. Conforme as necessidades e as conveniências, eram liberais e escravocratas, concomitantemente (SCHWARZ, 2000, pp. 35-40). Além disso, numa sociedade em que a maior parte da população vivia em condição servil ou dependia diretamente da autoridade pessoal dos proprietários, estes acabaram desenvolvendo uma larga margem de manobra para seu arbítrio (Idem, ibidem: p. 88-9). Mas não é essa a volubilidade que constatamos em Pierre Menard. Sua volubilidade se parece mais com o traquejo de José Dias, o agregado culto de Dom Casmurro, obrigado a se adaptar constantemente às condições ditadas pelos donos da casa, numa espécie de volubilidade reflexa e defensiva, que tem sua origem no capricho dos senhores[4].

Ao analisar a produção especificamente literária de Menard, constatamos que, desconsiderando as obras circunstanciais e de feição puramente encomiástica (o perfil da condessa de Bagnoregio, um círculo de sonetos dedicados a baronesa Bacourt e aqueles incluídos no álbum de Madame Bachelier), resta apenas um único soneto, publicado em duas versões no ano de 1899 (p. 42), além de dois trabalhos de tradução e uma transposição de Cimetière marin, de Valéry, em versos alexandrinos (pp. 43-4). Grande parte do gênio literário de Menard estava comprometida em agradar os poderosos; a outra, engajada em exprimir incessantemente o pensamento de outros autores. Portanto, podemos discernir a imagem de um artista cuja expressão individual caiu totalmente refém de suas conveniências extraliterárias, a ponto de se tornar um mero reprodutor, quiçá talentoso, de ideias que não são as suas. Nesse sentido, sua autoimposta tarefa de reproduzir o Dom Quixote de Cervantes, palavra por palavra, parece representar a situação, elevada ao absurdo, de alguém que, absolutamente absorvido por interesses alheios, tornou-se incapaz de expressar suas próprias ideias. Menard deixaria de ser o arranjador literário de ideias alheias para reproduzir ipsis litteris o discurso consagrado de um outro.

O empenho de Pierre Menard em levar a cabo sua abnegada missão (ou em forjar tê-la levado a cabo) poderia ter como objetivo reservar para si alguma glória numa carreira literária não muito notável, em nome da qual a personagem precisou se sujeitar ao jogo de interesses comandado por figuras como a condessa de Bagnoregio. Talvez a provável fraude tivesse como objetivo compensar os parcos resultados obtidos a um preço muito caro: a total eliminação de sua autonomia de pensamento e expressão, que redunda numa eliminação também de sua individualidade autoral.


O simbolista de Nîmes

Até agora, um elemento da caracterização do protagonista foi deixado de lado; segundo as palavras do narrador, Menard é um “simbolista de Nîmes, devoto esencialmente de Poe, que engendró a Mallarmé, que engendró a Valéry” (p. 49). Tendo em vista tal nobre genealogia, vejamos o que ela representa para os resultados desta análise. O simbolismo, movimento literário surgido na França ao final do século XIX, integra um processo histórico de autonomização da arte que culminou no esteticismo, tendência da arte em se autocentrar, tomando a si própria como conteúdo e abdicando de representar a realidade social (BÜRGER, 2008, p. 108). Para entender como a arte atingiu esse estágio, é preciso levar em consideração as transformações que a ascensão da sociedade burguesa imprimiu ao desenvolvimento artístico.

Tradicionalmente, a arte desempenhava uma série de funções sociais, como, por exemplo, no culto religioso ou nas formas cortesãs de sociabilidade. Nesse contexto, a arte estava ligada ao clero e à nobreza pela instituição do mecenato, devendo atender às expectativas e aos objetivos das classes que a patrocinavam. Com a ascensão da burguesia e a organização da sociedade de consumo, as obras de arte passaram a estar à disposição do mercado, que, além de levá-las a um público maior, ainda se tornou fonte de renda para os artistas, livrando-os de sua dependência em relação à corte e à Igreja. Essa sujeição da arte ao mercado propiciou que ela se desvinculasse de suas tradicionais funções na sociedade, criando para ela uma demanda específica (HABERMAS, 2003, pp. 46-56).

No plano da Filosofia, essa transformação se fez acompanhar por reflexões que reivindicavam para a arte um domínio autônomo — o estético —, apartado das questões de ordem prática ou intelectual. Assim, o objetivo da obra de arte não seria mais instruir (como diziam as poéticas clássicas), mas apenas deleitar, propiciando uma fruição desinteressada; a arte deveria tão somente produzir beleza, o que seria um fim em si mesmo. Embora desde o começo da Idade Moderna já houvesse reflexões nesse sentido, foi durante o Iluminismo que tal concepção ganhou força[5], encontrando em Kant seu principal formulador. Em sua Crítica da faculdade do juízo, Kant descreve o belo como algo capaz de comprazer “independente de todo interesse”, diferentemente do agradável, que satisfaz os sentidos e responde a inclinações pessoais, e do bom, que expressa conformidade a uma finalidade prática, conceitualmente definida. Por um lado, o belo não satisfaz nem deixa insatisfeito (requisitando uma atitude puramente contemplativa), e possui uma validade universal, embora diga respeito a uma operação mental subjetiva, impossível de ser atingida por meio dos conceitos; por outro, não possui qualquer finalidade, encontrando em si mesmo seu próprio fim (KANT, 2008, pp. 49-61). Portanto, o belo seria o objeto de uma fruição “pura e desinteressada”, sendo “interesse” definido como o apreço por algo que satisfaz nossas inclinações individuais ou que atende às necessidades de uma finalidade prática (extraestética, portanto) (Idem, ibidem: pp. 49-52).

Contudo, tanto esse processo histórico de autonomização quanto sua formulação teórica só resultaram no esteticismo a partir do momento em que a arte, alijada de suas funções tradicionais, abandona a representação da realidade social, passando a se ocupar de si mesma, de suas técnicas e procedimentos, ou do mundo subjetivo do artista, reduzido ao solipsismo. Nesse sentido, o simbolismo, definido por Edmund Wilson (s.d.) como “uma tentativa, através de meios cuidadosamente estudados — uma associação de ideias, representada por uma miscelânea de metáforas — de comunicar percepções únicas e pessoais” (p. 22), pode ser considerado um momento chave do esteticismo em literatura, para o que contribui o total desprezo que, via de regra, o poeta simbolista nutria em relação à realidade empírica e à vida cotidiana (BALAKIAN, 2007, p. 67). Para transmitir suas experiências irredutivelmente pessoais, era preciso que o poeta inventasse uma linguagem única, desfigurando a linguagem comum ao tentar obter dela as sugestões mais sutis e as imagens mais sofisticadas (WILSON, op. cit.: 45).

Tal aspecto do simbolismo pode ser entendido como uma reação à democratização da linguagem literária, decorrente da conversão da obra em mercadoria. Ian Watt descreve como o romance — sob o impacto do surgimento de um público consumidor de literatura decorrente da organização do mercado editorial — tornou-se um gênero de destacada importância na Inglaterra do século XVIII. Destinado a um público mais amplo, originário dos estratos médios da população urbana, o romance prescindia das convenções dos gêneros tradicionais, que supunham uma educação formal erudita, para privilegiar uma linguagem mais corrente e temas relacionados à vida do homem comum, burguês (WATT, 1990, p. 45). O simbolismo, ao contrário, manifestou franca hostilidade à sensibilidade do homem comum, procurando instituir uma espécie de aristocracia espiritual. Em última análise, tratava-se de assegurar a dignidade da literatura, seu caráter desinteressado, diante das necessidades criadas por uma lógica editorial mercantilista ou mesmo por uma disseminação da palavra escrita, que, por meio da imprensa, passou a atingir um maior espectro da sociedade.

O desejo de uma linguagem poética pura, livre das exigências de comunicabilidade e dos resíduos da experiência cotidiana, transparece numa das obras de Menard, “una monografía sobre la posibilidad de construir un vocabulario poético de conceptos que no fueran sinónimos o perífrasis de los que forman el lenguaje común, ‘sino objetos ideales creados por una convención y esencialmente destinado a las necesidades poéticas’” (pp. 42-3). Esse projeto coloca Menard em sintonia com os preceitos da escola literária à qual, segundo o narrador, ele estaria ligado. Ao que tudo indica, no entanto — e nisso residiria a engenhosidade de Borges neste conto —, para que Menard possa garantir espaço para suas atividades, foi preciso que ele se comprometesse com os interesses de figuras remanescentes da nobreza. Há uma ironia histórica nisso: embora a organização da sociedade burguesa em sociedade de consumo tenha sido o que permitiu à arte desvincular-se de suas funções tradicionais, atingindo um estatuto autônomo, Pierre Menard, em nome desta mesma autonomia e contra os efeitos da mercantilização da literatura, associa-se, por meio de uma espécie informal de mecenato (o favor), à nobreza, classe da qual a arte precisou se desvincular em seu processo de emancipação. Contudo, mesmo nesse arranjo o capital empresarial se faz presente pela união das nobrezas nacionais europeias com o capitalismo internacional, como sugere o casamento da condessa de Bagnoregio com Simón Kautzsch, da Pensilvânia, estado norte-americano de forte tradição industrial. É interessante que o narrador, ao falar de Kautzsch, omita as reais atividades da personagem, preferindo dar destaque a sua suposta obra filantrópica, de abrangência internacional e que deixa uma série de vítimas pelo caminho. Talvez o narrador enxergue vulgaridade nas atividades do marido da condessa, pelo quanto de cálculo e interesses econômicos elas introduzam no círculo das relações sociais representados no conto.

Num exercício formidável de volubilidade, Menard precisa conciliar o caráter desinteressado de seu trabalho com a adesão aos interesses daqueles que o viabilizam, permitindo que o poeta não precise se sujeitar às exigências do mercado ou da sociedade como um todo. Inclusive, a negação de qualquer consequência social da atividade artística se faz perceber na improdutiva tarefa de reescrever Dom Quixote, que nada acrescenta ao mundo nem mesmo à tradição literária. É como se Menard dedicasse todas as suas forças à execução de um esforço absolutamente fútil, procurando ressaltar sua independência em relação a qualquer necessidade prática (mas, para tanto, é preciso que ele se comprometa ideologicamente com os objetivos daqueles que, financeiramente, possibilitam esse esforço). Em suma, na tentativa de conciliar compromissos antagônicos, o simbolista de Nîmes se reduz ao mutismo de repetir incessantemente as palavras de outrem.


Considerações finais

Como venho fazendo desde o começo deste artigo, gostaria de salientar mais uma vez que meu objetivo não foi provar que o enredo de “Pierre Menard” consiste na representação de uma farsa, mas, sim, que a trama foi construída de tal maneira a nos fazer colocar em dúvida o que está sendo narrado. Até onde sei, esse é um aspecto relevante do texto que até agora parece ter sido ignorado ou subestimado pela crítica, talvez encantada pela magia intertextual prometida pelo conto, o que facilitaria a circunscrição de sua análise ao âmbito da tradição literária. Ao contrário disso, meu objetivo foi desvelar a rede de interesses sociais que a obra configura, acusando o complexo jogo de refrações que distingue a perspectiva autoral das de seu narrador e suas personagens.

Não é demais lembrar que, assim como acontece com o ensaio escrito por Pierre Menard a respeito de Paul Valéry, a avaliação que o poeta simbolista faz de Dom Quixote corresponde ao reverso exato das opiniões do autor. Para Menard, que não consegue imaginar o universo sem os versos de Poe, o romance de Cervantes é “contingente” e “não necessário” (p. 49), enquanto, para Borges, o mesmo livro ocupa uma posição central na literatura ocidental, tanto que a ele o escritor dedica algumas de suas melhores reflexões[6]. Sobretudo, o intuito de Menard em reescrever Dom Quixote é um caso inflacionado daquilo o que Borges (1998), num de seus ensaios, chamou de “superstição do estilo” (pp. 214-7). Segundo tal ensaio, o que teria assegurado a Dom Quixote sua perenidade seria o caráter descuidado de sua linguagem (segundo certos preceitos de perfeição estilística), resultante da prioridade concedida por Cervantes aos aspectos propriamente ficcionais do texto. Ao passo que obras literárias exaustivamente trabalhadas resistem mal às mudanças da linguagem no tempo e perdem muitas de suas qualidades durante a tradução, “Quixote ganha batalhas póstumas contra seus tradutores e sobrevive a toda versão descuidada”, do que se conclui: “a página de perfeição, a página na qual nenhuma palavra pode ser alterada sem prejuízo, é a mais precária de todas” (Idem, ibidem: p. 216). Portanto, o objetivo de Menard de “producir unas páginas que coincidieran — palabra por palabra y línea por línea — con las de Miguel de Cervantes” (p. 47) é por princípio uma negação daquilo que constituiria, para Borges, o real valor literário do texto cervantino, uma total redução do romance à dimensão material de sua linguagem, o que incorreria num fetichismo da palavra.

Por sobre as palavras do narrador, um nível acima no plano da composição literária, sentimos pairar uma consciência que tensiona os elementos da obra, oferecendo um enquadramento irônico para os acontecimentos que integram o enredo. Assim, podemos perceber que há todo um empenho em deslindar o complexo das relações de classe configurado, que, uma vez trazido à luz, repõe os termos nos quais a trama é formulada. Se, conforme leitura corrente, Pierre Menard funciona como uma alegoria da situação do escritor dos países de origem colonial diante da tradição literária europeia — obrigado a reorganizar os elementos desta a partir de seu horizonte histórico e cultural específico —[7], é trabalho ainda por fazer analisar o modo como o deslocamento irônico da narração, com seu jogo de refrações, prepara o debate.

Outro desdobramento possível, levando em conta as consequências das conclusões aqui encontradas, seria pensar no conto como uma crítica à dimensão ideológica da concepção moderna de autonomia estética. O conto mostra como o caráter aparentemente desinteressado da atividade artística de Menard está embaraçado numa teia de interesses econômicos e sociais que lhe dá sustentação. Dessa maneira, a obra oferece a redução particularizadora de uma situação de alcance mais geral, pois, como Peter Bürger aponta, o desligamento da arte esteticista das condições materiais nas quais ela está inserida — na medida em que a obra de arte recusa o conjunto de referências que a lastreiam em seu contexto de origem — resulta justamente de tais condições[8], como espero ter demonstrado, de forma sucinta e simplificada, na terceira parte deste artigo. Se assim é, creio que seria necessário reexaminar a produção narrativa de Borges, averiguando se “Pierre Menard...” representa um caso isolado ou, se ao contrário, a denúncia da dimensão ideológica do esteticismo está presente em outros de seus textos narrativos, o que poderia significar uma inflexão nos estudos da obra do escritor argentino, frequentemente louvado por seus jogos de espelho metalinguísticos e seus labirintos de referências intertextuais, dos quais nem sempre se logrou tirar algum potencial crítico.


Referências bibliográficas

ADORNO, Theodor W. “Palestra sobre lírica e sociedade”. In: Notas de literatura I. Tradução Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003, pp. 65-89.

BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. Tradução José Pedro Antunes. São Paulo: Cosac Naify, 2008.

BALAKIAN, Anna. O simbolismo. Tradução José Bonifácio. São Paulo: Perspectiva, 2007.

BORGES, Jorge Luis. Ficciones. Madrid: Alianza Editorial, 1997.
———— . Obras completas. São Paulo: Globo, 1998. Vol. I.
———— . Outras inquisições. Tradução Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

HABERMAS, Jünger. Mudança estrutural na esfera pública. 2ª ed. Tradução Flávio R. Khote. Rio de Janeiro: tempo Brasileiro, 2003.

KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. 2ª ed. Tradução Valério Rohden e António Marques. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

SANTIAGO, Silviano. “O entre-lugar do discurso latino-americano”. In: Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978, pp. 11-28.

SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.
———— . Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.
———— . “A poética envenenada de ‘Dom Casmurro’”. In: Duas meninas. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp. 7-41.

TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Tradução Caio Meira. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009

WATT, Ian. A ascensão do romance. Tradução Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

WILSON, Edmund. O castelo de Axel. Tradução José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, s.d.





[2] BORGES, Jorge Luis. “Pierre Menard, autor del Quijote”. In: Ficciones. Madrid: Alianza Editorial, 1997, pp. 41-55. Todas as citações da obra se referem a esta edição.
[3] Para uma análise de como funciona tal mecanismo no contexto social do escravismo brasileiro de meados do século XIX, cf. SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000, p. 20. Nas próximas partes deste trabalho, especificaremos o contexto social no qual se dá a história de “Pierre Menard”.
[4] Sobre José Dias, Schwarz (2000) afirma: “(...) note-se que o agregado leva o amor dos formalismos à última consequência, que é a descrença nas formas elas mesmas. Assim, ele salta de uma a outra conforme a sua conveniência e sem constrangimento, desobrigado de consistência, com desapreço vertiginoso pela dignidade que cultua, o que lhe proporciona uma espécie de liberdade de movimento diante de seus senhores”. (p. 23).
[5] Para uma descrição sintética desse processo, cf. TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Tradução Caio Meira. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009, pp. 45-60.
[6] Cf. BORGES, Jorge Luis. “Magias parciais do ‘Quixote’”. In: Outras inquisições. Tradução Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, pp. 61-5. Em tal ensaio, Borges identifica na grande obra de Cervantes a origem de alguns procedimentos que caracterizarão sua própria escrita.
[7] Cf. SANTIAGO, Silviano. “O entre-lugar do discurso latino-americano”. In: Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978, pp. 11-28.
[8] BÜRGER, op. cit.: p. 101.
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