sábado, 27 de dezembro de 2014

O voyeurismo na poesia parnasiana de Raimundo Correia


Texto publicado originalmente na Revista Germina

O crítico português Duarte de Montalegre, em seu Ensaio sobre o Parnasianismo brasileiro, definiu da seguinte maneira a postura do poeta parnasiano: “(...) o parnasiano é um sensual; a sua atitude poética perante o mundo limita-se a uma vivência de plasticidades, de harmonias, de cores”[1], ou seja: a poesia parnasiana remeter-se-ia, por oposição às escolas literárias idealistas (como o Romantismo), prioritariamente ao mundo dos fenômenos sensíveis. Entretanto, é possível distinguir na sensualidade aludida — ou, melhor dizendo, nessa “sensorialidade” — a ascendência do elemento visual sobre os demais, tanto que, não raro, os poemas de nosso Parnasianismo eram chamados “quadros” ou “cromos”. Percebe-se, portanto, a visualidade como aspecto central da configuração do universo imaginário da poesia parnasiana, o que assume uma interessante feição ao abordarmos a vertente erótica de tal poesia no Brasil: o voyeurismo, caracterizado não somente pela descrição do corpo feminino, como também por colocar em cena (tematizar) a própria situação do voyeur, daquele que, sorrateiro, flagra a intimidade de seu objeto de desejo.

Afonso Romano de Sant’anna, em seu estudo sobre o erotismo na poesia brasileira, foi o primeiro a dar a devida importância ao voyeurismo como componente da ars erotica parnasiana. Opondo o Parnasianismo a uma tendência “oral” da poesia romântica, Sant’anna fala de um “reincidente voyeurismo” de nossos parnasianos, resultado de uma duplicidade da mulher como signo: ao passo que ela é apresentada como Vênus (significante), subsiste nela um substrato ideológico que a acaba identificando com a Virgem Maria (significado). Tal duplicidade, relacionada à gênese de nossa cultura patriarcal — fortemente marcada pela tradição católica — e reforçada pela posição que o positivismo dedicava à mulher em seu sistema, cria uma situação na qual, ao mesmo tempo em que a figura feminina apresenta-se como objeto de desejo, a possibilidade da realização desse desejo é interdita[2]. Por consequência, o distanciamento, que se manifesta pela “repetição dos verbos ‘ver’ e ‘olhar’” e no qual o sentido da visão substitui o corpo do eu lírico, surge como um expediente que visa mitigar a carga erótica relacionada à representação do corpo feminino[3].

Seria ingênuo afirmar que a repressão não é uma poderosa força atuando na conformação do erotismo parnasiano. Entretanto, a análise de Sant’anna, ao enfocar a poesia erótica preferencialmente pelo prisma da interdição, acaba deixando de lado algumas importantes nuances. O distanciamento — ao instaurar o espaço necessário à perspectiva voyeurística — opera dentro da concepção de visualidade do Parnasianismo, que, se elide a possibilidade do contato entre eu lírico e figura feminina, ao mesmo tempo força ao limite as normas do decoro estilístico. Subsiste, no voyeurismo parnasiano, a tentação de mostrar sempre um pouco além do permitido. Para isso, é preciso que tal desejo de ver conforme-se a uma linguagem depurada de qualquer obscenidade, o que facultaria ao poeta sua investida no campo minado das fantasias.

Possivelmente, o poeta que melhor encarnou os dilemas e as ambiguidades do voyeurismo parnasiano no Brasil foi Raimundo Correia. Para mostrá-lo, limitar-me-ei, dentre seus poemas que apresentam a nudez feminina como tema, àqueles que, de alguma maneira, colocam em jogo a questão do olhar.

A avidez do olhar

A estreia literária de Raimundo Correia acontece em 1879, com o livro Primeiros sonhos. Trata-se de um livro tipicamente romântico (ultrarromântico, para ser mais preciso), no qual se sente grande influência de Álvares de Azevedo e Casimiro de Abreu, numa época em que grande parte da intelectualidade brasileira já acusava o esgotamento do Romantismo. Machado de Assis assim escrevia, também em 79: “(...) acho legítima explicação do desdém [pelo Romantismo] dos novos poetas: eles abriram os olhos ao som de um lirismo pessoal, que salva as exceções, era a mais enervadora música possível, a mais trivial e chocha. A poesia subjetiva chegara efetivamente aos derradeiros limites da convenção, descera ao brinco pueril, a uma enfiada de coisas piegas e vulgares”[4]. Não nos esqueçamos que, um ano antes, o Romantismo fora alvo de jovens poetas nas páginas do Diário do Rio de Janeiro. Tais poetas publicavam poemas escarnecendo a velha escola literária, que, por sua vez, era defendida — também em versos — por poetas mais tradicionalistas, num episódio que ficou conhecido como Batalha do Parnaso[5]. Não é por acaso, portanto, que o próprio Raimundo Correia chegue a apontar o caráter anacrônico de seu primeiro livro[6].

Pouco haveria o que dizer sobre esse livro, que replica mecanicamente os lugares-comuns identificados por Mário de Andrade na poesia lírico-amorosa de nossos românticos, reunidos pelo autor de Macunaíma sob a definição de “complexo do medo do amor”[7]. Em Primeiros sonhos, encontramos a figura da virgem pudica e langorosa, o eu lírico tímido e submisso (sempre à beira da paralisia diante da mulher amada) e a sublimação do sentimento amoroso, destituído de qualquer conotação erótica. Um tipo de poesia que, ao mesmo tempo em que reúne vários tropos da tradição lírica europeia (pelo menos desde o Trovadorismo occitânico), serviu de conveniente meio de expressão a indivíduos formados numa cultura patriarcal baseada na idealização dos vínculos familiares, na sacralização da mulher no papel de mãe e na valorização (prescritiva) da virgindade feminina.

Portanto, é no segundo livro de Correia — Sinfonias, de 1883 — que a temática erótica aparece em contornos mais nítidos. Sinfonias é uma obra bastante representativa de uma época na qual, durante o ocaso do Romantismo, concorriam várias tendências poéticas, dentre elas um Parnasianismo ainda incipiente. O livro divide-se em duas partes: na primeira, de natureza mais propriamente lírica, reminiscências românticas convivem com elementos parnasianos e outros do “realismo”; na segunda, o que vemos é uma poesia de caráter político, empenhada num projeto de reforma social modernizante e que se encaixa no que, à época, era chamado de poesia socialista ou social-realista. A obra de Raimundo Correia assume uma feição exclusivamente parnasiana apenas a partir de seu terceiro livro, Versos e versões, de 1887.

Levando em conta Sinfonias e Versos e versões, nos quais a temática erótica aparece de maneira mais pronunciada, procurarei ater-me aos poemas que apresentam características parnasianas, deixando de lado os que, no primeiro livro, são diretamente filiados à poesia realista, como os sonetos “Na penumbra” e “Après le combat”.

Para os propósitos deste ensaio, o mais significativo poema do conjunto é “Plena nudez”, publicado em Sinfonias. Embora seja perceptível a inspiração de tal soneto no “Profissão de fé” de Carvalho Júnior (em que o autor combate os lugares-comuns do lirismo-amoroso romântico, sobretudo a excessiva sublimação da figura feminina), distingue-se a eleição do ideal de beleza clássico, considerado perene em contraposição aos modismos hodiernos. Vamos a ele:

Eu amo os gregos tipos de escultura;
Pagãs nuas no mármore entalhadas;
Não essas produções que a estufa escura
Das modas cria, tortas e enfezadas.

Quero um pleno esplendor, viço e frescura
Os corpos nus; as linhas onduladas
Livres; da carne exuberante e pura
Todas as saliências destacadas...

Não quero, a Vênus opulenta e bela
De luxuriantes formas, entrevê-la
Da transparente túnica através:

Quero vê-la, sem pejo, sem receios,
Os braços nus, o dorso nu, os seios
Nus... toda nua, da cabeça aos pés!
           
O eu lírico reivindica uma visualização integral das graças feminis da estátua de Vênus, sem que o pudor do artista lhe oblitere a vista. Na verdadeira arte, a nudez terá de ser plena, total, radiante, não devendo haver qualquer impedimento ao olhar. Além disso, a evocação da arte grega como modelo talvez nos remeta a um relacionamento mais livre com o nu, isento das noções de pecado e vergonha que caracterizam a civilização judaico-cristã. Um soneto que parece colocar em prática os princípios defendidos em “Plena nudez” é “Ouro sobre azul”, também de Sinfonias:

Quando ela, sobre as águas transparentes,
Surge em casta nudez, em amor acesa,
A vaga envolve em ósculos frementes
Todo o corpo da olímpica princesa.

O misto de luxúria e de pureza
Dos seus contornos nítidos, patentes,
É o poema excelso da Beleza
Em estrofes de Paros, reluzentes...

Vendo-a assim, cuido ver, branca de espuma,
Vênus que surge, e da onda que flutua
No verde flanco lânguida se apruma;

E soltos, vendo-lhe os cabelos, cuido
Ver despenhar-se sobre a deusa nua
Serena catadupa de ouro fluido...

“Casta nudez”, “todo o corpo”, “contornos nítidos” e “deusa nua”; embora o poeta não se detenha em nenhuma parte específica do corpo feminino (com exceção dos cabelos), a nudez da deusa é sem dúvida o tema principal do poema, como as passagens coligidas permitem supor. Trata-se de uma visão geral e genérica do nu, sem o detalhamento requerido em “Plena nudez”: “Os braços nus, o dorso nu, os seios/ Nus (...)”, mas ainda assim um poema de manifesta sensualidade. Embora o observador da cena não seja diretamente representado, percebemo-lo nas seguintes passagens: “Vendo-a assim, cuido ver (...)” e “(...) vendo-lhe os cabelos, cuido/ ver (...)”. O eu lírico apresenta-se como aquele que frui a brilhante aparição da deidade nua. Trata-se de uma estratégia distinta da que verificamos no poema “Aspásia”, de Versos e versões:

Ao clarão oriental do sol; da balsamina,
Doce, pelo nariz bebendo a essência fina;
Do lábio a polpa a abrir, mais úmida e vivaz,
Que a polpa sumarenta e rija do ananás;
Com as mãos a soster dos seios copiosos
O gêmeo e branco par, os dois limões cheirosos,
Os dois globos de neve humana; e o largo olhar
Embebedando em luz; toda a se espreguiçar,
Num espreguiçamento e num bocejo estranho,
Aspásia vacila antes de entrar no banho...
Como a expelir do sono os fluidos mais sutis,
Os membros distendia, às curvas e aos quadris
As linhas desmanchando, ondulosas, redondas...
(...)
Finalmente ela entrou na líquida esmeralda,
Pouco a pouco... meteu, primeiro, o leve pé
De jaspe e rosa, e após cingia-a já até
Quase ao meio da branca e deliciosa perna
A água, a se desfazer numa carícia terna...
Mas um berro brutal, de súbito, atroou,
E no ambiente aromado ativo se espalhou
Esse olor especial de que fala, no idílio
Agreste e pastoril das Éclogas, Virgílio;
Entre as moitas estava a contemplar-lhe os mil
Encantos da nudez e o busto feminil,
Com olhos de lascívia e de volúpia mornas,
Um sátiro enramado, um Coridon de cornos,
Um bode enfim... Surpresa, ela olhou para trás,
Estremeceu, e viu-se então a coisa mais
Estranha e original, que imaginar se pode: —

O bode a persegui-la, e ela a fugir do bode!...

Neste poema, o papel do voyeur é transmitido do eu lírico ao sátiro que observa Aspásia banhar-se. Aliás, a situação de voyeurismo estabelecida entre as duas personagens é um dos elementos que contribuem para a criação da atmosfera erótica do poema, introduzindo uma tensão sexual inexistente em “Ouro sobre azul”. A consumação do impulso amoroso é uma possibilidade mantida em aberto, ainda que tal consumação signifique, no fim das contas, um ato de violência sexual. Não esqueçamos que a perseguição da beldade nua por um ente da floresta é um tema mitológico recorrente, encontrado também em “O leque”, de Alberto de Oliveira. Outro aspecto interessante a considerar em “Aspásia” é que nele encontramos o nu mais detalhado da obra de Raimundo Correia, e o mais sensual. Além de suas diversas informações visuais, o poema ainda abarca o paladar (o lábio comparado à “polpa sumarenta e rija do ananás”; a “branca e deliciosa perna”), o olfato (os seios como “dois limões cheirosos”; o “ambiente aromado ativo”) e o tato (“A água, a se desfazer numa carícia terna...”), mobilizando uma gama de sensações.

Agora vejamos “Noite de inverno”, também de Versos e versões:

Enquanto a chuva cai, grossa e torrencial,
         Lá fora; e enquanto, ó bela!
         A lufada glacial
Tamborila a bater nos vidros da janela;

         Dentro, esse áureo torçal
Do cabelo que, rico, em ondas se encapela,
         Deslaça; e o alvor ideal
Do teu corpo à avidez do meu olhar revela;

         Porque, à avidez do olhar
         Do amante, é grato, ao menos,
Dessas noites no longo e monótono curso,

         — Claro como o luar —
         Ver um busto de Vênus
Surgir nu dentre as lãs e dentre as peles de urso.

O corpo da mulher revela-se como espetáculo à “avidez do olhar” do eu lírico; entretanto, algo muda de figura. A princípio, a conjunção enquanto sugere uma oposição entre o frio da chuva, com sua “lufada glacial”, e o ambiente onde eu lírico e sua amada se encontram, que supomos aquecido. Ocorre, todavia, que à medida que sua nudez se desvela, a mulher torna-se tão fria quanto a noite chuvosa. Seu cabelo é “áureo” e “rico” como o ouro, elemento mineral; o “alvor” da pele é “ideal”, o que eleva o corpo feminino além da realidade concreta; o “busto de Vênus” é “claro como o luar”. A própria escolha do termo “busto”, em detrimento do mais frequente “colo” ou de “seio”, demonstra a intenção de aproximar a amada de uma estátua, representando-a fria em contraste com “lãs” e “peles de urso”, que transmitem a ideia de calor.

Affonso Romano de Sant’anna aponta outros dois expedientes pelos quais o teor erótico da poesia parnasiana seria mitigado, além do distanciamento já referido: o esfriamento, em que a figura feminina é apresentada por meio de “metáforas duras e frias”, e a imobilidade, segundo a qual a mulher é fixada como estátua, portanto impossibilitada de corresponder ao afeto de seu admirador (o que chamo, não sei se com alguma originalidade, de complexo de Pigmaleão do Parnasianismo brasileiro)[8]. Ambos os expedientes podem ser percebidos em “Noite de inverno”. Se em “Ouro sobre azul” e “Aspásia” o tema mitológico ganha vida, introduzindo o poema num clima de sensualidade, em “Noite de inverno” a mulher transmudada em estátua de Vênus é investida de frieza — sua nudez é gélida como o clarão da lua, muito diferente do calor mediterrâneo que pressentimos nos outros dois poemas.

Aqui surge uma questão interessante: ao que parece, o tema clássico é o que faculta ao poeta sua entrada nos domínios do erótico. Chancelados pela tradição como elementos da alta cultura, tais temas, inúmeras vezes representados na arte ocidental, perdem qualquer teor obsceno ou perverso que, porventura, pudessem ter originalmente. Por outro lado, a nudez da mulher contemporânea apresentava-se de maneira problemática à consciência dos artistas na segunda metade do século XIX. Em seu livro A pintura da vida moderna, o crítico de arte norte-americano T. J. Clark reconstitui o escândalo que o quadro Olympia, de Édouard Manet, causou ao ser exposto no Salão de Paris de 1865[9]. Entre outras razões para o escândalo, estaria o fato de Manet, ao representar a nudez de sua figura central, prescindir de todo o repertório clássico que, por sua natureza alegórica, garantia ao nu certa dignidade artística, além do que, optando pelo tema da cortesã, o artista o apresentava em desacordo com a ideologia da época, que criara um mito social reconfortante sobre a prostituição, destituindo-a de seu caráter de classe ao priorizar a imagem da prostituta de luxo. Comentando o nu como gênero da arte francesa de meados do século XIX, Clark aponta seu convencionalismo universalizante: “A inevitável força sexual dessa nudez é convertida em várias ações e atributos, e traduzida numa linguagem opulenta e convencional. O que resta é um corpo, dirigido ao espectador franca e diretamente, mas em grande medida generalizado na forma, arranjado num esquema complexo e visível de rimas, expurgado de particularidades, oferecido como uma versão livre, mas respeitosa, dos modelos corretos, aqueles que melhor enunciam a natureza”[10].

Olympia (1863) - Édoaurd Manet

Devemos levar em consideração que o parnasianismo, incluindo o brasileiro, compartilhava com a arte academicista francesa do século XIX vários temas. Abundam, na arte do período, inúmeros nascimentos ou aparições marítimas de Vênus e, se fôssemos listar os poemas de nossos poetas parnasianos sobre o assunto, a lista seria enorme. Para ficar em alguns exemplos, citemos, de Raimundo Correia, além do já apontado “Ouro sobre azul”, o soneto “Citera”, do livro de 1891 (Aleluias). Alberto de Oliveira, por sua vez, possui o poema “Aparição nas águas” (de seu primeiro livro, Canções românticas) e uma série de três sonetos intitulada “Afrodite”, presente em Meridionais. Além disso, Olavo Bilac, com seus poemas “O julgamento de Frineia” e “Aspásia”, parece dialogar com dois quadros de Jean-Léon Gérôme: Phryné devant l’Aéropage (1861) e Socrate venant chercher Alcibiades chez Aspasie (Idem), respectivamente.

Phryné devant l’Aéropage (1861) - Jean-León Gérôme

Portanto, o que temos no poema “Plena nudez” parece ser a defesa do “ideal pagão” caro à arte europeia do século XIX e que, conforme T. J. Clark, proporcionava “um espaço no qual o corpo da mulher pudesse ser consumido sem desmedida prevaricação”[11]. A nudez da mulher contemporânea, ao contrário, ameaçava embaralhar as categorias sobre as quais estavam fundados os sistemas de representação social da época. Se, na França, a prostituta ajudava a constituir, por negativo, a imagem da chamada “mulher honesta”[12], no Brasil, país fortemente marcado por suas origens patriarcais, essa questão mostrava-se ainda mais sensível.

Mary Del Priori descreve como a imagem da santa-mãezinha (de inspiração mariológica) tornou-se um modelo de comportamento às mulheres do Brasil Colonial. Ao longo dos séculos XVI e XVII, houve a sacralização do papel social de mãe, de modo que a mulher era restrita aos cuidados da casa e da família, o que a integrava no projeto colonizador e liberava os esforços masculinos para a produção econômica e a defesa do território, além de assegurar o contingente de “portuguesinhos” para levar adiante o processo de colonização. A Igreja, por sua vez, enxergava na mulher o elo de transmissão da doutrina e dos valores católicos às gerações futuras (não nos esqueçamos de que isso se dava em pleno contexto da Contrarreforma). Dessa maneira, elege-se o modelo da santa-mãezinha como ideal de comportamento cujo objetivo era adequar a sexualidade feminina aos rígidos padrões da moralidade tridentina e instrumentalizar a mulher (isto é, direcionar suas energias e seu trabalho social) para o esforço colonizador[13].

Atribuía-se então à mulher, na condição de mãe, uma respeitabilidade que era também marca de distinção de classes. Numa sociedade em que o sistema produtivo polarizava-se entre senhores e escravos, a maior parte da população livre vivia numa situação de aguda instabilidade social, sobrevivendo de expedientes provisórios, o que podia significar uma existência levada em trânsito, ao capricho das oportunidades de trabalho. Como consequência, eram comuns nessa parcela da população as uniões informais, às vezes efêmeras, sem falar que muitas mulheres pobres, sem meios próprios de subsistência, sentiam-se impelidas a aceitar arranjos ilegítimos, como o concubinato ou até mesmo a prostituição. Assim, as mulheres de extração mais baixa (muitas delas de origem indígena e africana) pareciam, aos olhos da casa-grande, moralmente degradadas e destituídas de qualquer senso de decência. Portanto, a respeitabilidade da mulher de família patriarcal, estabelecida como norma para o comportamento feminino, devia-se a determinadas circunstâncias socioeconômicas favoráveis, constituindo um privilégio para poucas e um ideal a ser perseguido pelas classes menos favorecidas[14].

É esse o arcabouço ideológico com o qual a representação do corpo feminino ameaçava romper, caso não fossem respeitados os protocolos que prescreviam, em se tratando da nudez, a temática clássica. O perigo era embaralhar as categorias sociais relativas à condição feminina, gerando um apagamento da fronteira entre a mulher honesta e a desfrutável, e introduzindo na poesia aspectos que a moralidade pública preferia manter à margem, como uma sexualidade não enquadrada nos padrões matrimoniais e familiares. A ausência daqueles elementos que constituíam as convenções artísticas da época instaurava, no cerne do poema, um conflito entre o impulso voyeurista (típico do Parnasianismo, como vimos) e uma preocupação com a dignidade intrínseca da arte (decoro) e a decência do público. Vejamos, a esse respeito, o soneto “No banho”, de Sinfonias:

Não eras só na câmera deserta
Quando o banho tomavas perfumoso;
Banho feito do aroma voluptuoso
Que às odaliscas a Turquia oferta...

Fora — do estio estava a clama aberta —
Dentro — o sossego morno e silencioso —
E eu às ocultas te mirava, ansioso;
Não eras só na câmera deserta...

E em torno derramaste o olhar celeste;
Desfolhaste-te, flor; nu, dentre a veste
Teu colo começou a aparecer,

E a espalda, e o dorso... E, vencedor sublime,
Eu, forte, não perdi-te nem perdi-me,
E ai! podia perder-me e te perder!

O que temos aqui não é somente a configuração de uma perspectiva voyeur por meio do detalhamento pictórico da nudez feminina, mas também a tematização da própria situação de voyeurismo, em que o eu lírico espiona sorrateiramente uma mulher que se banha. O voyeur assume o primeiro plano da cena e a excitação que percorre o soneto dá-se tanto pelo prazer da indiscrição quanto pela nudez em si, esboçada, aliás, apenas nos dois tercetos. O poema ousa ao não se refugiar no território pacificado das referências clássicas, apesar de uma episódica alusão às odaliscas (figuras que, devido a seu exotismo oriental, integravam o rol dos lugares-comuns eróticos aceitáveis na arte do século XIX), contudo, sua ousadia possui limites claros: a gradação pela qual a nudez feminina é evocada interrompe-se logo abaixo do dorso, restando ao leitor completar com a imaginação a lacuna deixada em aberto pelo sinal de reticências. Logo em seguida, o eu lírico gaba-se de seu autocontrole, pois poderia ter colocado a perder sua honra e a da mulher caso cedesse aos desejos que o consumiam. A renúncia ao gozo é motivo de orgulho, uma vez que preserva os valores que regulam socialmente a vida sexual, mas não se consegue ocultar a ambiguidade da situação: a contemplação da mulher num momento de intimidade já é uma transgressão dos valores que o eu lírico julga estar defendendo.

“No banho” é um exemplo bastante ilustrativo do embate entre um imperativo visual, que procura converter a sexualidade em espetáculo, e as normas sociais que prescrevem a mais severa discrição quanto às coisas do sexo. No soneto de Raimundo Correia, ambas as forças são tematizadas e tenta-se encontrar um ponto de equilíbrio entre elas, de modo que uma não seja completamente sacrificada em favor da outra. Dando continuidade a estas reflexões, passemos ao poema “No jardim” (Sinfonias):

Estavas no jardim. Raiara um dia
Fresco, primaveril, resplandecente;
Nos tanques cheios de água, intermitente,
Quérulo, o vento as flores espargia...

Bela, sem que me visses, eu te via
Colhendo rosas; teu roupão na frente
Suspenso um pouco, negligentemente,
Rósea porção da perna descobria...

Que desalinho cândido! que braço!
Como enchia-se níveo o teu regaço
Das flores que caíam-te da mão!

E mal me viste, em fogo, te fitando,
Rubra em pejo, a fugir foste deixando
Uma esteira de rosas pelo chão...

Embora a situação e o ambiente representados sejam tipicamente românticos, dignos de um Casimiro de Abreu, e não haja qualquer referência clássica, o poema é essencialmente parnasiano, como se pode perceber pela ênfase na descrição em detrimento do lirismo. O eu lírico, ainda que personificado, praticamente nada nos fala de suas emoções e sentimentos, restringindo-se a nos apresentar da maneira mais detalhada e nítida possível a cena na qual participa na condição de mero espectador, pelo menos até a última estrofe, em que a moça percebe sua presença. Pode-se dizer que estamos diante de uma cena romântica apresentada de acordo com princípios formais parnasianos, dando testemunho não só do hibridismo de Sinfonias, como também da permanência de elementos românticos na poesia parnasiana de Raimundo Correia.

Por trás da aparente inocência do quadro, podemos sentir o erotismo no foco dado à perna parcialmente descoberta da mulher e ao “níveo regaço” que se vislumbra através de suas vestes desalinhadas. Basta isso para que o olhar do eu lírico acenda-se “em fogo”, assustando seu objeto de desejo. Ao contrário do que acontece na poesia romântica, não é preciso que o poeta insista sobre a pureza de sua amada, empregando repetidamente qualificativos relacionados à castidade. Em “No jardim”, tudo o que precisamos saber sobre o caráter da figura feminina está concentrado em “rubra em pejo” e em sua fuga ao descobrir-se espionada. É a própria descrição da mulher e a narração dos fatos que nos dão as informações necessárias, sem que o autor mencione explicitamente as virtudes da mulher observada. O voyeurismo um tanto idílico deste soneto nos remete à passagem de uma paráfrase que Raimundo Correia — também em Sinfonias — escreveu a partir de um poema de Victor Hugo que conta a história do beijo de um jovem casal numa cerejeira:

Quando entre as ramas via algum fruto maduro,
Como um botão de fogo, entre os sarçais, vermelho,
Subia mais, mostrando, em um desleixo puro,
A perna inteira até a curva do joelho...

A escolha do poema de Victor Hugo certamente não é fortuita, pois indica uma tendência dos poemas de Correia e que consiste na apresentação dos olhos como os principais órgãos de satisfação erótica. Tanto nesta paráfrase quanto em “No jardim”, a inocência e a graça infantil da mulher amada são o que impedem o olhar do eu lírico de entregar-se a seus impulsos. Apesar da incorporação cada vez mais evidente dos princípios parnasianos, mesmo assim fazem-se sentir aspectos relacionados ao complexo romântico do medo do amor, testemunhando a continuidade da experiência social que lhe serve de fundamento.

Como podemos perceber, nesses poemas o olhar do voyeur recua diante de seu objeto de desejo, seja por sua própria firmeza moral, seja pelo recato da figura feminina. Quando o poema destaca-se do sistema de convenções clássicas, entram em circulação os valores morais da sociedade de origem patriarcal, que encontravam no lirismo-amoroso romântico um meio conveniente de manifestação. Porém, a própria situação de escopismo neles configurada, que coloca o eu lírico na condição do voyeur, introduz no poema uma nota perversa (sexualmente falando), perturbando tanto a resolução moral de “No banho” quanto a atmosfera idílica de “No jardim”.

Considerações finais

Ao longo do século XIX, a sociedade brasileira passava por profundas transformações. Uma das mais significativas foi o deslocamento das elites rurais para as cidades, processo descrito e analisado por Gilberto Freyre em Sobrados e mucambos[15]. Nas cidades, as famílias proprietárias entravam em contato com uma realidade social mais diversificada e complexa, incorporando novas formas de sociabilidade, inspiradas no estilo de vida burguês das nações europeias industrializadas. Não demoraria até que os rebentos dessas famílias, educados de acordo com os sistemas de pensamento mais modernos da época, acabassem por contestar os fundamentos sobre os quais se estabelecia a sociedade brasileira de então, combatendo o regime monárquico, a escravidão e os valores patriarcais de nossa formação cultural (incluindo, aqui, o papel atribuído à mulher). O grande marco desse impulso reformista da juventude brasileira ficou conhecido como “Geração de 70” (1870), capitaneada por figuras como Tobias Barreto e Sílvio Romero.

Contudo, esse desejo de reforma da sociedade esbarrava num obstáculo: como modernizar a cultura e o pensamento brasileiros quando nossas estruturas econômicas mantinham-se basicamente as mesmas desde o período colonial, com a economia voltada ao fornecimento em larga escala de produtos primários para o mercado internacional? Situação, esta, que se preservaria, com alterações epidérmicas (como a substituição da mão de obra escrava pela de trabalhadores em condição de semi-servidão) até pelo menos a década de 1930. A história do século XIX no Brasil, como se vê, constituiu-se ao sabor de rupturas e acomodações, entre descontinuidades e continuidades.

É sobre esse pano de fundo social de efervescência e sedimentação da cultura brasileira nos 1880 que melhor apreendemos o voyeurismo vacilante de Raimundo Correia. Por um lado, percebe-se o intuito de levar o erotismo além dos limites estabelecidos pela moralidade patriarcal, que tão bem se enquadrava na produção lírico-amorosa de nossos poetas românticos — intuito que se configura como um desejo de desvelar a nudez feminina. Por outro, a resolução de ver e representar o corpo da mulher “sem pejo, sem receios” esbarra nos valores patriarcais, como a sobrevalorização da castidade feminina, tão logo o poeta abandona o repertório prestigioso das convenções classicistas. Um voyeur vacilante para uma sociedade que ora parece avançar, ora girar em falso.

Restou, ainda, para uma oportunidade futura, a investigação daquilo o que Manuel Bandeira, tratando do erotismo na poesia de Raimundo Correia, identificou como sendo uma “decantação da nudez”[16], o que, infelizmente, escaparia aos limites do atual ensaio.


Referências bibliográficas

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BANDEIRA, Manuel. Antologia dos poetas brasileiros: poesia da fase parnasiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.

CLARK, T. J. A pintura da vida moderna: Paris na arte de Manet e de seus seguidores. Tradução José Geraldo Couto. São Paulo: Companhia das Letras, 2004

CORREIA, Raimundo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1961.

MONTALEGRE, Duarte de. Ensaio sobre o parnasianismo brasileiro. Coimbra: Coimbra Ed., 1945.

FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. 15 ª ed. São Paulo: Global, 2004.

PRIORE, Mary Del. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidade e mentalidade no Brasil Colônia. 2ª ed. São Paulo: Editora UNESP, 2009.

SANT’ANNA, Affonso Romano de. O canibalismo amoroso: o desejo e a interdição em nossa cultura através da poesia. 4ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.



[1] MONTALEGRE, Duarte de. Ensaio sobre o parnasianismo brasileiro. Coimbra: Coimbra Ed., 1945, p. 14.
[2] SANT’ANNA, Affonso Romano de. O canibalismo amoroso: o desejo e a interdição em nossa cultura através da poesia. 4ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1993, pp. 66-73.
[3] Idem, ibidem: p. 74.
[4] ASSIS, Machado de. “A nova geração”. In: Crítica literária. São Paulo: Ed. Brasileira, 1959, pp. 181-2.
[5] Segundo Manuel Bandeira, a designação “parnasianismo” não está vinculada à Batalha do Parnaso. O termo, tomado de seu correspondente na literatura francesa, teria sido utilizado pela primeira vez no Brasil em 1886, numa nota crítica de Alfredo de Souza a um livro de Francisco Lins. BANDEIRA, Manuel. Antologia dos poetas brasileiros: poesia da fase parnasiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, pp. 7-8.
[6] Ao final de primeiros sonhos, diz Raimundo Correia: “Reconheço, que há neste meu primeiro trabalho literário composições ridiculamente contrárias ao espírito da época”. CORREIA, Raimundo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1961, p. 120.
[7] ANDRADE, Mário de.  “Amor e medo”. In: Aspectos da literatura brasileira. 4ª ed. São Paulo: Livraria Martins; Brasília: INL, 1972, pp. 197-230.
[8] SANT’ANNA, 1993, p. 74.
[9] CLARK, T. J. “A escolha de Olympia”. In: A pintura da vida moderna: Paris na arte de Manet e de seus seguidores. Tradução José Geraldo Couto. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, pp. 129-209.
[10] Idem, ibidem: p. 185.
[11] Idem, ibidem: p. 182.
[12] Idem, ibidem: p. 165.
[13] PRIORE, Mary Del. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidade e mentalidade no Brasil Colônia. 2ª ed. São Paulo: Editora UNESP, 2009, pp. 40-1.
[14] Idem, ibidem: p. 41.
[15] FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos. 15 ª ed. São Paulo: Global, 2004.
[16] BANDEIRA, Manuel. “Raimundo Correia e seu sortilégio verbal”. In: CORREIA, Raimundo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1961, p. 18-9.

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