quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Na lata da canção cabe a poesia? Resposta de um crítico vira-lata a Bruno Tolentino




Publicado originalmente aqui, em 10/06/2013.

Quase toda vez que acompanho uma discussão que procure definir se letra de música é ou não uma forma de poesia, deparo com formulações do tipo: “Como já   provou Bruno Tolentino, letra de música e poema não são a mesma coisa; pertencem a gêneros distintos”. Não sei ao certo em que ocasião Tolentino teria demonstrado por A + B que canção ≠ poema; o que conheço é uma entrevista dada por ele à Veja, na qual se toca no assunto. Como ignoro o caminho pelo qual o poeta chegou a suas conclusões, concentrar-me-ei nos argumentos genéricos daqueles que, vez por outra, evocam sua autoridade para evitar entrar no mérito da questão.

[Nota: A formulação de Tolentino encontra-se no livro A balada do cárcere, em sua introdução ("Da Quod Jubes, Domine") e nos dois textos finais ("DJ & déjà vu" e a fictícia entrevista "As joias e as cartas de amor"). Desde que o texto presente foi publicado pela primeira vez, tive a oportunidade de lê-los e protelo escrever uma resposta, sendo que ainda considero válidos os argumentos aqui expostos.] 

“Canção e poema são gêneros distintos”. O primeiro problema desta afirmação é uma filigrana teórica, digna de um sábio bizantino, ocupado em discutir o sexo dos anjos enquanto o exército inimigo assoma às muralhas da cidade. A rigor, poesia não é um gênero. Antes que o uso de “literatura” se disseminasse no século XIX, “poesia” era o termo geralmente empregado para se referir às obras estéticas de natureza verbal, fossem elas escritas ou não (a bem da verdade, aquilo o que os gregos antigos chamavam de poíēsis engloba um espectro muito amplo de atividades artísticas e artesanais). Com a popularização das formas literárias em prosa, já nos limiares da era burguesa, “poesia” passou a designar exclusivamente as obras escritas em versos. Gradativamente, os gêneros dramático e diegético (ou épico, ou narrativo, conforme a corrente teórica que se escolha) migraram para a prosa, deixando a poesia entregue ao gênero lírico e, desde então, lírica e poesia costumam ser, no senso-comum, tomadas como sinônimos, mas não são.

Se nos ativermos à definição “poesia é uma composição verbal de natureza estética concebida em versos”, então sim, toda canção é poética, toda letra de música é um poema. Mas parece que não é apenas isso que vai pela cabeça das pessoas quando se põem a discutir se letra de música é ou não poesia. Assim sendo, outra possibilidade de abordar a questão seria: “a canção faz parte do gênero lírico ou constitui um gênero diverso?”.

Como é amplamente conhecido, poesia e canção possuem uma mesma origem; mais do que isso: historicamente, aquela parece derivar desta. Isto pode ser constatado não apenas passando em revista os primórdios da arte poética naquelas culturas que deitaram as raízes da civilização ocidental, como também observando aquelas comunidades que, ainda hoje, permanecem à margem do universo da escrita. Originariamente, poesia é palavra cantada; é na canção que se manifesta, pela primeira vez, o gênio poético humano. Pelo menos é o que afirma Segismundo Spina, em Na madrugada das formas poéticas, amparado por uma consistente tradição de estudos antropológicos: “A poesia primitiva, entretanto, não é exclusivamente a poesia dos povos pré-letrados, mas a poesia que está ligada ao canto, indiferenciada, anônima e coletiva. É a poesia no seu estágio ancilar, isto é, subordinada à música e à coreografia, mais especialmente àquela. (...) A função ancilar da poesia está representada pela associação em que viveu com a música, de certo modo com a dança, antes que surgisse a pessoa do poeta, a poesia individual” (SPINA, 2002, p. 15). Segundo o lingusta Roman Jakobson, mesmo em comunidades que desconhecem a música instrumental, a poesia surge integrada a uma modalidade vocal de música.

Sabe-se bem que o próprio nome do gênero lírico foi retirado do instrumento — a lira — que fazia o acompanhamento das composições poéticas que formavam seu repertório entre os gregos. Além disso, na Grécia antiga, todos os demais gêneros ditos poéticos também recebiam alguma forma de acompanhamento musical, seja com instrumentos de cordas, de sopro ou percussivos, tanto que, em alguns textos de Platão, música e poesia são tratadas como sinônimos. Vale lembrar, conforme Albin Lesky apontou, que os enredos da tragédia ática têm sua origem nos corais que transmitiam a história dos heróis da pólis, constituindo um material que, depois, encontrar-se-ia com o cerimonial do culto a Dionísio, configurando o drama grego clássico. Não apenas o coro permaneceu como parte do teatro dos gregos antigos, como ele ainda evoluía coreograficamente em torno do altar principal ao som de uma música, e a função de treinar e reger o coro das apresentações teatrais era considerada uma honra pública, disputada por algumas das figuras políticas mais proeminentes de Atenas.

Consta que tenham sido os sábios alexandrinos os primeiros a dissociar poesia e música. Não podemos esquecer, porém, a contribuição dos trovadores medievais no surgimento da poesia europeia da Idade Moderna, como no caso da influência direta dos provençais sobre a obra lírica de Dante e Petrarca. Tais trovadores escreviam poemas exclusivamente para suas composições musicais (procurando o equilíbrio perfeito entre motz el son — palavra e som), sem dizer que muitas das formas poéticas tradicionais originaram-se das formas do cancioneiro popular, trazendo ainda características estruturais relacionadas às necessidades específicas do canto, como a própria métrica. O soneto, por exemplo, deriva de uma forma de canção. Não por acaso, a poesia medieval portuguesa está organizada em cancioneiros e suas formas são todas relacionadas ao canto: cantigas de amigo, de amor, de escárnio e de maldizer.

Por todos esses fatos que acabo de elencar, se a canção constitui um gênero próprio, à parte do lírico, faz-se necessário considerar que tal separação se deu por meio de um processo historicamente construído e não está dada na origem, portanto nem na “essência”, dos fenômenos aqui considerados. No máximo, pode-se dizer que a canção não corresponde a uma concepção moderna do que seja a poesia. Mas então o que é, afinal de contas, isso o que estamos chamando de “poesia”? Muitas foram as tentativas de definir o que ela é, mas nenhuma mostrou-se definitiva. De agora em diante, tratarei de algumas definições amplamente difundidas, procurando observar até que ponto elas permitem ou não o enquadramento da canção no domínio do poético.

Primeiramente, tratarei da concepção apresentada por Octavio Paz em O arco e a lira, embora ela seja excessivamente inclusiva. Para Paz — talvez de olho na acepção original do termo entre os antigos —, todo artista digno do nome é um poeta e toda obra verdadeiramente artística, uma forma de poema, logo, não haveria qualquer dificuldade de incluirmos a canção aqui. No entanto, a atual discussão levanta um problema mais específico: a possível correspondência entre letra de música e a expressão por excelência do poético, segundo o próprio Paz; importa saber se letra de música é uma espécie de poema, no sentido estrito desta palavra.

Para não nos afastarmos do cerne do problema, vamos nos ater à questão do poético naquilo o que o poema tem de mais específico: sua natureza verbal. Segundo Octavio Paz, a razão de ser da linguagem é o ritmo e é no verso que tal vocação rítmica se manifesta de maneira mais plena. Teria sido apenas com o passar dos séculos, com a necessidade de adequar a fala a um discurso cada vez mais intelectualizado, que a linguagem verbal teria se afastado desse seu “núcleo primitivo”, até fixar-se na prosa, no texto escrito de caráter discursivo, sacrificando muito de sua pulsação original e de sua ambiguidade polissêmica em nome de uma precisão das ideias. O ritmo, contudo, continuaria pulsando na poesia, pois “o ritmo se dá espontaneamente em toda forma verbal, mas só no poema se manifesta plenamente. Sem ritmo não há poema; só com ritmo não há prosa” (PAZ, 1982, p. 82). A métrica, por exemplo, sustentar-se-ia não por uma necessidade de ordenar o discurso e disciplinar a sensibilidade do poeta, como certa compreensão pós-romântica faz crer, mas pela própria natureza rítmica da poesia: “os acentos e as pausas constituem a parte mais antiga e mais puramente rítmica do metro; ainda estão próximos da pancada do tambor, da cerimônia ritual e dos calcanhares dançantes que batem no chão. Graças ao acento, o metro se põe de pé e é unidade dançante” (Idem, p. 88). Seria justamente pela conversão da métrica em unidade meramente convencional, desligada das necessidades intrínsecas da fala, que os modernistas teriam passado a adotar o verso livre como forma de restituir ao poema sua vitalidade original.

Pois bem, se poesia é essencialmente linguagem sustentada pelo ritmo, a pergunta que nos cabe é: até que ponto letras de músicas possuem autossuficiência rítmica, isto é, não serão elas dependentes do complemento musical para que suas potencialidades rítmicas se realizem? É possível ler uma canção desconhecendo sua melodia e nela sentir a pulsação da linguagem à qual Octavio Paz se referia? E, por outro lado: será inconcebível ler um poema e nele perceber um ritmo meramente mecânico, ou até mesmo forçado, sem fluência? Creio que meu leitor, por sua própria experiência, há de me conceder que, adotando-se tal critério, a distinção entre canção e poema não se faz mais tão evidente. Para não me prolongar muito em análises, consideremos apenas a estrofe final da canção “O quereres”, de Caetano Veloso:

O quereres e o estares sempre a fim
Do que em mim é de mim tão desigual
Faz-me querer-te bem, querer-te mal
Bem a ti, mal ao quereres assim
Infinitivamente pessoal
E eu querendo querer-te sem ter fim
E, querendo-te, aprender o total
Do querer que há e do que não há em mim

As palavras desta estrofe, mesmo descoladas de sua melodia, mantém um ritmo próprio, não apenas pela repetição de sons e do verbo querer, mas também pela dinâmica vertiginosa que as ideias estabelecem entre si. Há algo de barroco: ao argumento sinuoso, de difícil apreensão imediata — quiçá propositalmente obscuro —, soma-se o jogo virtuosístico das antíteses. A reflexão transmitida por essas palavras também não é de pouca monta: o que ama o amador na cousa amada? Ama o ser amado como ele é ou uma projeção de suas próprias expectativas? Será que o que desejamos no outro não é senão nosso próprio desejo? Se assim é, o exercício de descobrir o que amamos no outro pode ser um exercício de introspecção, pois ao “querer-te sem ter fim” acabo também querendo “aprender o total” sobre a natureza do próprio desejo (“o querer que há”) e os limites de minha identidade (“o que não há em mim”). Em tal embaralhamento das categorias do eu e do outro, o desejo, contraditório por essência, é expresso por um paradoxo — “infinitivamente pessoal” —, abrindo uma nova pergunta: “quem é que no amador ama a cousa amada?”, e colocando em cheque a identidade daquele que deseja com a apreensão consciente de sua própria alteridade (problematizando, em termos psicanalíticos, a relação do id com o eu).

Ainda aqui, caro leitor? Pois então retomemos o fio da meada. Para Octavio Paz, porém, o que distingue a linguagem poética daquela que não o é (chamá-la-emos de “discursiva”) não é somente sua suscetibilidade ao ritmo, mas também a maneira como, por meio da imagem (conjunto de relações semânticas que constituem uma unidade imaginária fundamental), aquela explora as virtualidades de sentido das palavras, em vez de sacrificá-las a um sentido inequívoco, cuja finalidade se restringe à comunicação. No poema, um ser pode se identificar com outro ser, sem, contudo, perder sua identidade primeira. O ser é ao mesmo tempo uma coisa e outra, e ambas podem ser contraditórias e até mesmo excludentes. Para ilustrar melhor, vejamos os primeiros versos da canção “Metáfora”, de Gilberto Gil:

Uma lata existe para conter algo
Mas quando o poeta diz: “Lata”
Pode estar querendo dizer o incontível

A lata, ente que, na realidade concreta, “existe para conter algo”, pode ser um signo que, no poema, transmita um significado outro, até mesmo oposto a seu significado original. Sem deixar de ser apenas lata, esta se torna uma figura que significa ainda outra coisa; dessa maneira, o delimitado e o delimitante se fazem paradoxalmente incomensuráveis. Assim é a palavra na poesia: em vez do receptáculo de um significado fixo e pré-estabelecido, como uma lata, ela se torna o nó de uma teia virtualmente infinita de possibilidades semânticas. Passamos de uma lata a uma nebulosa de sentidos.

Aliás, neste ponto, a reflexão de Octavio Paz sobre a imagem e a natureza da linguagem poética esbarra na segunda concepção de poesia que gostaria de abordar. Em ABC da Literatura, Ezra Pound define, sinteticamente, a literatura da seguinte maneira: “Literatura é linguagem carregada de significado” e “grande literatura é simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível” (POUND, s.d., p. 32). O que possibilitaria a existência da literatura como tal é que, enquanto “numerais e palavras que se referem a invenções humanas têm significados rígidos, definidos”, “não há limite para o número de qualidades que algumas pessoas podem associar com uma dada palavra ou espécie de palavra, e muitas delas variam de indivíduo para indivíduo” (Idem, p. 41). Observando que a palavra em Alemão para poesia — dichtung — remete-se ao verbo dichten, que quereria dizer “condensar”, Pound afirma ser a poesia “a mais condensada forma de expressão verbal” (Idem, p. 40). Portanto, o que definiria a poesia seria sua densidade semântica.

Todavia, é forçoso reconhecer que nem todo poema poderia ser considerado alta literatura, nos termos em que Pound a entende. Meu leitor, se é dado à caça de novos poetas na internet, certamente já deve ter corrido os olhos por diversos poemas acabrunhantes, que, em sua total previsibilidade, nada tem a dizer além daquilo o que já se espera que eles digam. Mesmo os grandes poetas costumam ter seus poemas medíocres, que, embora lançando mão da linguagem conotativa, não possuem a riqueza interpretativa que se esperaria da “grande literatura”. Há até mesmo poetas de considerável prestígio cultural que nunca sequer rasparam nesse grau de exigência estipulado por Pound. Agora pergunto: faz sentido alçar qualquer poema, por mais medíocre que seja, à categoria de poesia, ao passo que se nega às mais elaboradas letras de música a mesma condição? Será mesmo que a melhor das canções de Chico Buarque não é capaz de ultrapassar em valor poético o mais descartável dos poemas líricos de Camões?

Se meus leitores imaginarem que um determinado texto, só por ter sido concebido como algo a ser cantado, é incapaz de atingir a densidade semântica necessária à poesia, sugiro que abram a Bíblia no livro de Salmos. Até hoje, milênios depois de sua escritura, pessoas recorrem a tais peças líricas atrás de conforto e orientação, imagino que com alguma serventia. Por outro lado, há muitos poemas por aí que pouco (ou nada) de realmente interessante tem a nos dizer. A tendência deles é desaparecer na poeira do tempo, mas nem sempre é o que acontece.

Outra concepção do que seja a poesia é a de Roman Jakobson, num inconclusivo artigo chamado “O que fazem os poetas com as palavras”, sintetizado de uma conferência pronunciada pelo célebre linguista na Faculdade de Letras de Lisboa, em 1972. Sabemos que uma das contribuições de Jakobson está na sistematização das funções da linguagem, dentre as quais se destaca a função poética. Nesta, há uma ênfase sobre a mensagem transmitida, sobre os aspectos propriamente “materiais” que a compõem (relativos à dimensão do significante no signo linguístico), não tanto sobre sua participação no circuito comunicativo. O interesse recai sobre como se diz e não tanto sobre o que é dito. Porém, a função poética não é exclusividade da poesia: além de estar presente na literatura de uma forma geral, ela ainda é constantemente empregada na publicidade e no humor (no emprego de trocadilhos, por exemplo). Embora seja na poesia que a função poética se mostre de maneira mais evidente (de modo que poderíamos definir aquela como “construção verbal na qual há a predominância da função poética da linguagem”), ainda assim qualquer coisa de específico nos escapa em tal definição. Talvez seja esse o problema que Jakobson pretendeu solucionar em sua conferência.

Como Octavio Paz, Jakobson parte do lugar-comum de que a poesia surge na confluência entre som e sentido, mas há uma particularidade no modo como Jakobson formula essa confluência: “Fala-se de estruturas rítmicas, fala-se de aliteração ou de rima: são, sem dúvida, realidades, mas não se trata só de música, está sempre em jogo a relação entre som e sentido: tudo na linguagem é, nos seus diversos níveis, significante” (JAKOBSON, 1973, pp. 7-8). “Significante” está sendo utilizado aqui em lato sensu e não conforme seu uso na linguística; Jakobson está querendo dizer que, num poema, cada escolha do autor, seja em nível vocabular ou sintático, tem uma razão de ser, cumpre uma função específica na estrutura do texto. Cada signo deve estabelecer uma relação significante, ou necessária, com os demais signos que integram a unidade linguística do texto, de maneira que a modificação de um único elemento é capaz de transformar todo o sistema, para melhor ou para pior.

Diferentemente da prosa, em que geralmente a mesma coisa pode ser dita de maneiras diferentes sem que haja uma perda comunicativa relevante, no poema, as palavras parecem aspirar a uma ordem ideal, a um dizer definitivo, no qual a configuração da mensagem se torna uma parte essencial de seu significado; por isso a dificuldade de traduzir poesia. Como afirma Waly Salomão em “Fábrica do poema” (belissimamente musicado por Adriana Calcanhoto, aliás): “sonho o poema de arquitetura ideal/ cuja própria nata de cimento encaixe palavra por/ palavra”. No poema ideal, cada palavra tem um lugar definido, impermutável. Seria isso o que os poetas fariam com as palavras. Edgar Allan Poe curtiu isso.

É neste ponto que a inclusão da letra de música no âmbito da poesia torna-se discutível. Será que a necessidade de adequar a letra à melodia não pode significar o comprometimento de uma organização mais eficaz das palavras? Sim, não duvido que isso aconteça, mas não costuma acontecer também com poemas metrificados? Quantas vezes não encontramos um poeta dando uma “forçada de barra” para que o verso caiba no metro escolhido, ou percebemos que a obediência ao esquema de rimas acaba gerando versos sem sentido, banais ou que não guardam qualquer relação de necessidade com os demais versos do poema ou da estrofe? Mesmo no verso livre às vezes é preciso forjar uma conclusão para que o poema não fique em aberto, ou tirar uma estrofe da cartola para fazer a ponte entre outras duas que parecem desconexas. Nas palavras mais do que avalizadas de João Cabral de Melo Neto: “Nos poetas daquela família para quem a composição é procura, existe como o pudor de se referir aos momentos em que, diante do papel em branco, exerciam sua força. Porque eles sabem de que é feita essa força — é feita de mil fracassos, de truques que ninguém deve saber, de concessões ao fácil, de soluções insatisfatórias, de aceitação resignada do pouco que se é capaz de conseguir e de renúncia ao que, de partida, se desejou conseguir” (MELO-NETO, 1994, p. 723).

Se a grande maioria das canções não se encontra ao nível de exigência que Pound estabelece para a poesia, o mesmo pode ser dito da maior parte da produção poética, não só a contemporânea, como também a de todas as eras. Hoje, quando encaramos a tradição literária, vemos uma série de autores e obras já filtrados, estudados e chancelados; toneladas de maus poemas e poetas medíocres desapareceram de nosso campo de visão. Para cada Manuel Bandeira, milhares de versejadores de circunstância existiram na mesma época. E ninguém há de dizer que um poema, por pior que seja, não é poesia. Se elegermos critérios muito elevados para o que é poesia, a maior parte daquilo o que chamamos como tal deixa de sê-lo. Neste caso, estaremos elegendo arbitrariamente um conceito que não alcança a totalidade dos fenômenos que pretende explicar, sendo que, quando a realidade desmente a teoria... bem, sabemos muito bem o que fazer com a teoria. Quem há de dizer que o mais bobo dos poemas de Oswald de Andrade não é um poema, que não integra o âmbito da poesia? Não estou aqui refutando as concepções de Paz, Pound ou de Jakobson, mas apenas sugerindo que elas se referem a um ideal de poesia, ao qual as obras poéticas reais se adéquam em diferentes graus.

Como espero ter demonstrado, não há qualquer aspecto fundamental que nos permita negar a uma letra de canção, por mais tosca que seja, seu estatuto poético, pois não somente de bons poemas é feita a poesia — se quisermos definir o que a poesia é, não devemos excluir os maus poemas do rol dos fenômenos considerados. Canção e poema lançam mão basicamente dos mesmos meios expressivos e estéticos em sua construção textual: geralmente são escritos em versos, utilizam linguagem conotativa e a atenção ao arranjo formal das palavras tem em ambos uma importância decisiva. Assim sendo, letra de música é também uma forma de poema, é também poesia. Sequer poderíamos falar que a canção é um subgênero da lírica, uma vez que a canção antecede as demais manifestações líricas; a canção, isto sim, é uma das diversas formas da lírica, a mais antiga delas.

A questão, desde o início, esteve mal formulada: é óbvio que letra de música é uma forma poética, o que se discute, afinal de contas, e de maneira equivocada — pois não se alcançavam os termos reais da discussão —, é se as canções atingem o grau de elaboração necessário para integrá-las ao âmbito daquilo o que Pound chamava de “grande literatura”, ou então ao nível da “alta cultura”. Há poemas que são grande literatura e outros que não são. Haverá canções que são grande literatura? Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil & cia. fazem grande literatura com suas músicas? Esta é a verdadeira questão, à qual pretendo retornar num próximo texto.

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