sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Onde queres canção, sou poesia: uma análise da letra de "O quereres", de Caetano Veloso


Retornando à discussão sobre a poeticidade das letras de música — e tendo lido os argumentos de Bruno Tolentino —, resolvi mudar de tática. Em vez de trabalhar no campo das possibilidades, partirei de um exemplo concreto para depois, num texto que deve se seguir a este, fazer a discussão teórica. Começo, então, com a letra de “O quereres”, de Caetano Veloso, que já havia sido mencionada no ensaio anterior. Vamos a seu primeiro verso:

Onde queres revólver, sou coqueiro

O verso, aliás como toda a canção, é estruturado a partir do emprego da antítese, figura de linguagem que expressa uma oposição de ideias: enquanto o interlocutor, no contexto de um relacionamento amoroso, quer uma coisa (“revólver”), o eu lírico assume uma condição contrária a tal anseio (“coqueiro”). Percebe-se também o uso de mais uma figura de linguagem: a metáfora, em que o eu lírico se faz substituir por outro termo, estabelecendo uma relação na qual eu = coqueiro. Mas não é só, pois “coqueiro”, assim como “revólver”, não deve ser lido denotativamente, de maneira literal, pois “coqueiro” evoca aqui a ideia de calma, tranquilidade, enquanto “revólver” sugere violência, raiva. Temos, portanto, duas metonímias, nas quais os termos substituem ideias a eles diretamente relacionadas. Num verso de cinco palavras, temos nada menos do que quatro figuras de linguagem, sendo que, para que a antítese funcione, é preciso que as metonímias sejam percebidas, senão talvez ficasse obscura a oposição entre os termos. Mas poderíamos dizer o contrário também: é a antítese que nos leva a pensar de que modo “revólver” e “coqueiro” podem se opor, induzindo o leitor/ouvinte a procurar o sentido conotativo por trás das palavras. Ou seja: essas figuras estão organicamente integradas, uma vez que estabelecem entre si uma relação de mútua dependência.

Chamo a atenção sobre tal arranjo não para louvar o virtuosismo poético de Caetano, que beira o barroco nessa canção, mas para mostrar sua funcionalidade: o verso desdobra-se em camadas de sentido, provocando e requerendo interpretação, e da interpretação de uma das partes depende o entendimento do todo: o círculo hermenêutico se fecha num único verso. O resultado do esforço interpretativo é: 1) coqueiro = tranquilidade; eu = coqueiro; logo, eu = tranquilidade; 2) revólver = violência; teu desejo = revólver; logo, teu desejo = violência; 3) conclusão: eu teu desejo. E tudo isso em apenas cinco palavras! Se, conforme Pound, “Literatura é linguagem carregada de significado” (POUND, s.d., p. 32) e, por sua vez, “poesia é mais condensada forma de expressão verbal” (Idem, ibidem: p. 40), espero que o leitor conceda que estamos diante de um autêntico exemplo de poesia neste verso. Ocorre que tal verso abre uma estrofe de oito versos, nos quais o mesmíssimo esquema se repete outras seis vezes:

Onde queres revólver, sou coqueiro
E onde queres dinheiro, sou paixão
Onde queres descanso, sou desejo
E onde sou só desejo, queres não
E onde não queres nada, nada falta
E onde voas bem alto, eu sou o chão
E onde pisas o chão, minha alma salta
E ganha liberdade na amplidão

Das seis estrofes do poema (não estou contando o refrão), quatro delas se desenvolvem a partir desse esquema, estabelecendo algumas associações inusitadas, como em “Onde queres comício, flipper-vídeo”, em que são opostas a ideia de uma politização que o interlocutor espera do eu lírico e atividades consideradas alienantes, como o videogame e a televisão. Além disso, às quatro figuras de linguagem do esquema reiterado ao longo de toda a canção (o que por si só configura outra figura de linguagem: a anáfora), soma-se mais uma, a elipse: “Onde queres comício, [sou] flipper-vídeo”, o que ocorre não fortuitamente, pois eu disse sobre o primeiro verso que se tratavam de cinco palavras, mas eu também poderia ter dito que se tratavam de dez sílabas poéticas, uma vez que estávamos diante de um decassílabo heroico (com um acento, isto é, uma sílaba tônica, na sexta sílaba poética):

1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
On/
de/
que/
res/
re/
vól/
ver/
sou/
co/
quei
           
Tirando algumas pouquíssimas exceções — o que inclui o refrão (escrito em redondilha maior) —, a letra de “O quereres” foi composta tendo o decassílabo heroico por base rítmica. Sim, caro leitor, o mesmo metro com o qual Camões escreveu Os lusíadas e seus sonetos (para não falar de Dante Alighieri e sua A divina comédia). Portanto, a elipse do verso anterior tinha a função de adequar este à métrica do restante da letra. Não há surpresas, uma vez que a canção — fazendo uso da metalinguagem — entrega a certa altura: “Onde queres o livre, decassílabo”. Um dos versos que escapa à métrica é o segundo a seguir:

Onde queres o sim e o não, talvez
E onde vês, eu não vislumbro razão

Enquanto o primeiro é um decassílabo heroico perfeito, o segundo é um decassílabo em que o pé escorregou da sexta para a quinta sílaba poética. É difícil supor a razão disso ter acontecido, mas uma possibilidade está na sonoridade marcante conseguida com o jogo de rimas internas e cruzadas: não-razão; talvez-vês. Pode ser que Caetano Veloso tenha achado mais interessante manter a sonoridade obtida pelos dois versos do que respeitar a todo custo o esquema previamente traçado, o que significaria sacrificar o (bom) efeito obtido. A despeito disso, nossa tendência natural é, por conta da sonoridade da letra, deformar a pronúncia de “vislumbro” para adequá-lo ao decassílabo heroico. Quando se ouve a canção sendo cantada, percebe-se algo como “E onde vês, eu não víslumbro razão”. Os demais versos que escapam à métrica do conjunto, que são três, concentram-se na última estrofe; destaquei-os em negrito:

O quereres e o estares sempre a fim
Do que em mim é em mim tão desigual
Faz-me querer-te bem, querer-te mal
Bem a ti, mal ao quereres assim
Infinitivamente pessoal
E eu querendo querer-te sem ter fim
E, querendo-te, aprender o total
Do querer que há e do que não há em mim

Nos dois primeiros versos destacados, ocorre o mesmo que no verso anterior: há um deslocamento do pé para a sílaba anterior, o que, durante a execução da música, Caetano geralmente procura corrigir com uma sutil mudança na acentuação das palavras. E não estou dizendo que ele o faz deliberadamente para consertar os versos, mas porque o próprio ritmo da estrofe, que tem como vértice o decassílabo heroico, naturalmente induz a isso. É o mesmo caso do “berrô” que o gato deu em “Atirei o pau no gato”. O último verso é o mais problemático, pois percebe-se uma tentativa de aglutinar “que há e” em uma única sílaba poética, o que não é eufônico. No entanto, durante a execução, isso não é tão percebido, pois, como se trata do último verso, ele é cantado de forma pouco mais pausada e prolongando-se as vogais finais, o que, por si só, já rompe com o ritmo habitual dos demais versos.

O fato de “O quereres” ter sido escrita numa métrica fixa não é nenhuma exclusividade. Para me ater a dois outros exemplos bastante conhecidos, cito o “Samba da bênção”, de Vinícius de Moraes, composto também em decassílabos heroicos, e “Construção”, de Chico Buarque, cujos versos são dodecassílabos com acento na sexta sílaba poética, medida conhecida como alexandrino arcaico (que se diferencia do alexandrino clássico por não respeitar a cesura).

Vamos agora ao assunto da letra. Nela, o eu lírico demonstra seu desejo de adequar-se às expectativas do outro (“Eu queria querer-te e amar o amor/ Construir-nos dulcíssima prisão/ Encontrar a mais justa adequação”), de modo a escapar aos desencontros do encontro amoroso (“Tudo métrica e rima e nunca a dor”), sugerindo que, idealmente, o amor deveria ser tal qual um poema organicamente composto e com todas as partes integradas, sem dissonâncias. Entretanto, a realidade não corresponde aos anseios e segue caminhos mais oblíquos (“Mas a vida é real e de viés”), tornando-se uma armadilha àquele que ama (“E vê só que cilada o amor me armou”), que consiste em enredar os sujeitos na teia de suas contradições e levando-os à frustração (“Eu te quero e não queres como sou/ Não te quero e não queres como és”).

O amador, ao lançar sobre o eu lírico projeções que não encontram neste correspondência (“O quereres e o estares sempre a fim/ Do quem em mim é de mim tão desigual”), gera uma reação confusa, de quem ora quer bem ao amador, ora o quer mal, levando inclusive a desgostar do desejo em si (“Faz-me querer-te bem, querer-te mal/ Bem a ti, mal ao quereres assim”). Utilizando-se de um oximoro, “infinitamente pessoal”, aponta-se o quanto o querer escapa ao controle consciente do sujeito, que não consegue equalizar seus anseios íntimos e seu objeto de desejo, sendo que “infinitivo” é a forma do verbo quando neutro em relação às condições de sua conjugação, como a categoria de pessoa. Ou seja: na formulação de Caetano, conjuga-se o impessoal (infinitivo) com o pessoal, como maneira de apontar que o querer (forma do verbo no infinitivo) dá-se num ponto cego da experiência subjetiva em que o indivíduo não se reconhece como sendo ele próprio, embora tal ponto seja parte constituinte dessa experiência (uma bela e sintética definição do conceito psicanalítico de “pulsão”). Finalmente, apresenta-se o desejar como uma forma de conhecer-se a si mesmo, confrontando-se com as próprias limitações e as condições reais do caso amoroso, para além de qualquer projeção idealizante (“E eu querendo querer-te sem ter fim/ E, querendo-te, aprender o total/ Do querer que há e do que não há em mim”).

Portanto, temos aqui o desejo apresentado como paixão, como pathos, uma força externa que arrebataria o sujeito, tirando-o do domínio de si e tornando-o passivo. Ocorre que, conforme apontado no oximoro analisado, essa força acomete o sujeito não desde fora, mas desde aquelas regiões obscuras de sua psique, do inconsciente. No desejo, há uma ruptura com a ideia do sujeito como uma integridade psicológica racionalmente articulada, isto é, com a noção do sujeito do conhecimento das filosofias cartesiana e kantiana, por exemplo. O sujeito do desejo (que sequer é sujeito de fato, antes um “sujeitado pelo desejo”) não coincide com a identidade que o sujeito do conhecimento formula sobre o sujeito como um todo. É por isso que há esse descompasso entre o que esperamos de quem desejamos e o que este realmente é; o desejo não é um cálculo, mas um perder-se de si, um descaminho que nos leva à senda inesperada do outro (um outro externo, o objeto do desejo, mas também um outro interno, instância psicológica na qual não nos reconhecemos, embora nos constitua). Portanto, é em torno do descompasso entre nossas expectativas em relação à realidade e a realidade ela mesma que gira o eixo da letra de “O quereres”, com seu jogo vertiginoso de antíteses.

Se me permitem ir um pouco mais longe, é possível filiar a canção de Caetano aos sonetos de Camões que procuram investigar a natureza do sentimento amoroso. Em “Amor é um fogo que arde sem se ver”, encontramos o mesmo enfoque nos aspectos contraditórios do impulso erótico, ao passo que, no que se refere a “Transforma-se o amador na cousa amada”, temos uma divergência fundamental. No segundo soneto, tipicamente neoplatônico, a Ideia do outro na mente do eu lírico é suficiente por si só, ocorrendo uma diluição dos limites entre ambos. De certa maneira, postula-se que o outro ideal, porque essência, é mais satisfatório que o outro real (acidental e transitório). Em “O quereres”, temos justamente a inadequação do ser real (no caso, o eu lírico) à idealização criada em torno dele.

Tal argumento, contudo, não é de fácil apreensão. As quarta e quinta estrofes, que é onde ele se desenvolve, são labirínticas e obscuras, ao modo barroco. Não se trata, portanto, de uma canção que entrega seu significado numa primeira audição, nem mesmo em uma dúzia de audições distraídas. Faz-se necessário um esforço deliberado de interpretação; é uma letra para um leitor/ouvinte “agudo”, capaz de desbravar as sinuosas entrelinhas do texto. Isso, por si só, não é uma qualidade, pois o hermetismo pode ser apenas o disfarce suntuoso de um argumento banal (o que, para mim, não é o caso), mas se destaco tal característica é para rebater a ideia de que a canção necessariamente comunica-se de maneira direta à sensibilidade de seu receptor, sem mobilizar seu intelecto. É possível — como na verdade é bem provável que aconteça na maioria das vezes — que as pessoas gostem de “O quereres” única e exclusivamente por sua melodia ou pela beleza de alguns versos, mesmo sem conseguir penetrar suas camadas de sentido, resultantes da tessitura intrincada de inúmeras figuras de linguagem (a maioria das quais nem cheguei a comentar). No entanto, isso não anula a riqueza semântica, a complexidade técnica e a força poética do texto.

Com certeza, “O quereres” não é o texto mais profundo ou complexo que já tive de enfrentar como leitor e crítico literário, mas tampouco é o mais superficial, mesmo se comparado a poemas de autores consagrados. Para deslindá-lo, precisei empregar meu instrumental analítico, empreendendo uma leitura exigente, na qual destacaram-se as seguintes qualidades: densidade semântica, maestria técnica, autonomia rítmica em relação à melodia (afinal de contas, está escrito em decassílabos heroicos) e possibilidade de diálogo com a tradição literária, resultando, pela síntese dos aspectos mencionados, numa fatura estética positiva. Arriscaria dizer que, muito embora não esteja ao nível dos grandes clássicos da língua portuguesa, a letra de Caetano corresponde com folga àqueles critérios estabelecidos por Pound para a poesia em seu O ABC da Literatura. Em suma, trata-se de um bom poema, embora não seja exatamente um grande poema. E não nos esqueçamos que o conjunto da poesia não é formado apenas pelos grandes poemas; dele constam também os maus poemas.

Nem todas as letras de música atingem o mesmo nível estético de “O quereres”. Se dela parto, no entanto, é por tratar-se de um texto que realiza muito do potencial poético da canção, erodindo os limites que a separam da poesia escrita (limites que, como espero ter demonstrado no texto anterior, são historicamente construídos, pois, na gênese da poesia, canção e poema eram uma coisa só). A diferença de qualidade entre poesia cantada e poesia escrita são, desse modo, circunstanciais e discutirei, no próximo texto, quais são as circunstâncias responsáveis por essa diferença — ocasião em que debaterei diretamente os argumentos de Bruno Tolentino.

Ouça a canção aqui:

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